02/08/2012
Caso Elize Matsunaga: reflexões sobre o papel da mídia no processo penal
- Fonte:
ESA/OABSP
Comentada pela Doutora Eleonora Rangel Nacif
Crimes bárbaros ocorrem diariamente por todos os cantos do país. Alguns, ganham um espaço privilegiado na mídia, causando grande interesse na população, que passa a acompanhar diariamente todo o trâmite da ação delituosa, veiculado pela imprensa em geral. Nesse contexto, os crimes de competência do Tribunal do Júri são mais tendentes a gerar comoção social e clamor público, convidando-nos à reflexão sobre a interferência midiática no processo penal. Para comentar o assunto, com enfoque no crime cometido por Elize Matsunaga, convidamos a Doutora Eleonora Rangel Nacif, filha do Doutor Mauro Otávio Nacif, Coordenador do curso do Tribunal do Júri na Escola Superior de Advocacia, Advogada Criminalista, Professora da ESA, Coordenadora-chefe do Departamento de Mesas de Estudos e Debates do IBCCRIM.
Elize Araújo Matsunaga é acusada de ter praticado homicídio triplamente qualificado (motivo torpe, recurso que impossibilitou a defesa da vítima e meio cruel) contra seu marido, o empresário Marcos Matsunaga, herdeiro da Yoki. Desde o dia 19 de maio de 2012, data em que ocorreram os fatos, as mídias em geral (jornais, revistas, televisão, rádio etc) têm se ocupado bastante em veicular notícias sobre este triste episódio. A edição de 13/06/12 da revista Veja, por exemplo, estampou uma foto na capa do belo rosto de Elize, lançando um legítimo “olhar 43”. A manchete que segue logo abaixo do “olhar” é a seguinte: “CASO YOKI - MULHER FATAL – A história de Elize Matsunaga, assassina confessa, que esquartejou o marido milionário enquanto a filha dormia”.
Interessante observar os elementos de impacto trazidos na capa da revista: 1) mulher fatal; 2) assassina confessa e 3) marido milionário. Em outras palavras, mulher bonita, crime e dinheiro. Para completar o mórbido menu, Elize era ex-prostituta, e conheceu Marcos através do site M. Class, no qual garotas de programa oferecem seus serviços.
Notícias sobre o “caso Elize” e assemelhados causam grande interesse e curiosidade na população em geral. A imprensa percebe este interesse e acaba por destinar grande parte do tempo dos programas televisivos e das páginas dos jornais para veicular notícias sobre crimes. “Mulher bonita, crime e dinheiro” definitivamente, vende. As notícias são veiculadas insistentemente, repetidas vezes, dando ao telespectador a impressão de que aquele fato ocorreu, na verdade, muito mais vezes do que de fato teria ocorrido. Ele se perpetua no tempo.
O programa Fantástico da Rede Globo veiculou uma reportagem no domingo (15/07/2012), na qual Elize e as presas Suzane von Richthofen e Ana Carolina Jatobá, aparecem na ala do banho de sol do presídio feminino de Tremembé. Uma câmera foi colocada nos arredores da penitenciária a fim de flagrar a rotina dessas três belas mulheres dentro do presídio. Diante deste lamentável episódio, cumpre observar o que diz o artigo 3º, da Lei de Execução Penal (Lei 7.210, de 11 de julho de 1984), o qual assegura ao condenado(a) e ao internado(a) "todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei". Na esteira deste raciocínio, oportuno lembrar o preceito constitucional que protege a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (art. 5º, X, CF), e ainda, o art. 41, inciso VIII, da LEP, que cuida dos “direitos do preso”, configurando-se entre eles a “proteção contra qualquer forma de sensacionalismo”.
Desta forma, conclui-se rapidamente que mesmo após a condenação, a presa continua titular de todos os direitos que não lhe foram atingidos pelo aprisionamento, tanto decorrente de sentença condenatória quanto de prisão provisória. A pessoa presa tem o direito ao esquecimento de seu passado criminoso para ressocializar-se, devendo ser poupada pela mídia, nas palavras de Manuel da Costa Andrade, de “um pelourinho público permanente reatualizado”. Por fim, no último Título da LEP, o qual cuida das “disposições finais e transitórias”, preocupou-se o legislador, mais uma vez, com a indevida exposição do preso: “Art. 198 da LEP: É defesa ao integrante dos órgãos da execução penal, e ao servidor, a divulgação de ocorrência que perturbe a segurança e a disciplina dos estabelecimentos, bem como exponha o preso à inconveniente notoriedade, durante o cumprimento da pena”.
Elize e suas companheiras de prisão foram expostas à “inconveniente notoriedade” ao serem filmadas dentro do presídio. O interesse público, nesse caso, choca-se com os direitos das presas à intimidade, a vida privada e a imagem.
Mas não é só. Ainda no que tange ao específico direito à imagem, merece destaque o conteúdo da Portaria nº 18, de 25 de novembro de 1998, da Delegacia Geral de Polícia (DGE), a qual dispõe, em seu artigo 11, sobre medidas e cautelas a serem adotadas na elaboração de inquéritos policiais e para a garantia dos direitos da pessoa humana. Na verdade, ela vem reforçar o art. 41 da LEP, o qual, como já foi visto, já inclui entre os direitos do preso a proteção contra qualquer forma de sensacionalismo. Esta portaria, muito bem redigida, especifica com toda a clareza que a pessoa quando está presa, quando está custodiada à autoridade policial, não pode, sem o seu consentimento expresso, ser submetida a fotografias, imagens ou qualquer forma de exposição da sua pessoa e da sua vida. Todavia, esta Portaria é constantemente desrespeitada, uma vez que Elize foi fotografada algemada , sendo conduzida por um policial (ele sim, tentando esconder o seu próprio rosto).
Historicamente, sempre foi mais comum nos depararmos com notícias de homens que matam suas companheiras, e não o contrário. Talvez seja pelo costume de uma sociedade machista, na qual a honra do homem tinha legitimidade jurídica para ser lavada com sangue. A masculinidade sempre foi mais ativa, às mulheres cabia definhar. Ou seja, no imaginário social, a mulher ainda é identificada mais como vítima do que como autora de crimes, principalmente os crimes passionais. Este elemento talvez seja um dos aspectos que ajude a perpetuar este insistente interesse nos crimes praticados por mulheres contra os seus próprios companheiros. O Promotor de Justiça que acusa Elize Matsunaga, Doutor José Carlos Cosenzo, participou do tradicional Júri simulado da ESA no dia 30/06/2012, juntamente com esta que subscreve, e também os professores Mauro Otávio Nacif, Ricardo Cesar Franco e o Magistrado Cassiano Ricardo Zorzi Rocha. Nos bastidores do Júri simulado, Cosenzo esclareceu dúvidas dos alunos sobre o caso. Argumentou o ilustre representante do Ministério Público que o crime teria sido premeditado, que ela teria matado o marido movida por vingança ao descobrir a traição e que queria ficar com o dinheiro, contradizendo, portanto, a versão de Elize, que alega crime passional. Indubitavelmente, o caso é interessante e instigante, é natural e até mesmo pedagógico que os operadores do direito e a sociedade em geral queiram se informar sobre o andamento do processo. Porém, a curiosidade mórbida de acompanhar os passos da acusada dentro do presídio, de testemunhar o seu confinamento e o seu sofrimento, foge, no meu sentir, de uma vontade normal de se informar.