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Posso dispensar meu empregado e mandar o governo pagar a rescisão? Sobre o art. 486 da CLT.

31/03/2020 - Fonte: ESA/OABSP

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Posso dispensar meu empregado e mandar o governo pagar a rescisão? Sobre o art. 486 da CLT.

 

Arthur Felipe das Chagas Martins[1]

Priscilla Boscarato Masselli Pina[2]

           Em decorrência de fala do Presidente da República Jair Bolsonaro, nas últimas horas recebemos diversos questionamentos sobre a possibilidade de dispensar empregados e delegar o pagamento das verbas rescisórias ao governo, com base em um dispositivo legal da Consolidação das Leis do Trabalho, a famigerada CLT. Ei-lo:

Art. 486 - No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.

§ 1º - Sempre que o empregador invocar em sua defesa o preceito do presente artigo, o tribunal do trabalho competente notificará a pessoa de direito público apontada como responsável pela paralisação do trabalho, para que, no prazo de 30 (trinta) dias, alegue o que entender devido, passando a figurar no processo como chamada à autoria.

§ 2º - Sempre que a parte interessada, firmada em documento hábil, invocar defesa baseada na disposição deste artigo e indicar qual o juiz competente, será ouvida a parte contrária, para, dentro de 3 (três) dias, falar sobre essa alegação.

§ 3º - Verificada qual a autoridade responsável, a Junta de Conciliação ou Juiz dar-se-á por incompetente, remetendo os autos ao Juiz Privativo da Fazenda, perante o qual correrá o feito nos termos previstos no processo comum.

           É natural que, em momentos como o que enfrentamos atualmente, o empresário busque se informar a fim de encontrar soluções para seu negócio. Entretanto, conforme restará exposto neste informativo, nosso entendimento é o de que esta não é a melhor medida, por dois motivos distintos.

           O art. 486 da CLT fala sobre a paralisação das atividades da empresa motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de dispositivo de lei. Seria uma paralisação em decorrência do chamado fato do príncipe, que nada mais é do que a prática de um ato pelo ente público que afeta indiretamente o ente privado.

           Assim, um fato do príncipe que justificasse a aplicação do art. 486 da CLT seria quando o governo, por sua discricionariedade, instituísse medidas que inviabilizassem o negócio. Normalmente ocorrem em casos pontuais, como a proibição de Outdoors no Município de São Paulo em 2006[3], sendo atingidas unicamente as empresas que trabalhavam exclusivamente com esse produto e com clientes apenas na cidade de São Paulo, ou então, nos casos de desapropriações de terrenos em que funcionem empresas ou clientela exclusiva de empresas para expansão de trens ou metrô.

           Porém, até o momento todas as medidas de restrição adotadas pelo ente público foram em decorrência da pandemia que assola o mundo, e não tiveram como “motivo” seu próprio interesse, mas a garantia da vida e da saúde pública acima de tudo. A situação é tão grave que já houve o reconhecimento de estado de calamidade pública (Decreto Legislativo nº 06/2020[4]) em todo o território nacional bem como de emergência de saúde pública decretada pelo Ministério da Saúde (Lei nº. 13.979/2020[5]).

           As medidas adotadas pelo governo visam resguardar a vida, e não tratam especificamente sobre um ou outro determinado ramo de negócio. Não haveria como prever-se os resultados das medidas adotadas em caráter de urgência: a situação (pandemia) ultrapassou qualquer possibilidade de previsão razoável pelo governo ou pelo ente privado.

           Assim, inexiste o fato do príncipe que justifique a aplicação do art. 486 da CLT.

           Porém, há mais um item a ser considerado. Não há como ignorar que a CLT é uma senhora septuagenária, eis que foi promulgada em 1943. Assim, é natural que alguns dispositivos legais reflitam direitos que existiram nos últimos setenta e seis anos, mas hoje não estão mais em vigor.

           O art. 486 da CLT está no Título IV, Capítulo V, que trata da rescisão do contrato de trabalho. E, no mesmo capítulo, há um artigo que diz exatamente o que seria a “indenização” à qual o artigo que transcrevemos acima se refere:

Art. 478 - A indenização devida pela rescisão de contrato por prazo indeterminado será de 1 (um) mês de remuneração por ano de serviço efetivo, ou por ano e fração igual ou superior a 6 (seis) meses.

§ 1º - O primeiro ano de duração do contrato por prazo indeterminado é considerado como período de experiência, e, antes que se complete, nenhuma indenização será devida.

(...)

           Qualquer empregador, em breve raciocínio, deve notar que há muito tempo não se vê uma indenização, nos termos de rescisão de contrato de trabalho, com base no art. 478 da CLT. Isso porque referida indenização era devida aos empregados que gozavam da chamada estabilidade decenalque foi extinta desde o advento da Constituição Federal de 1988, que adotou o regime do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço para todos os empregados.

           A indenização do art. 478 da CLT ainda existe... Desde que você, caro leitor, consiga encontrar um empregado ainda na ativa, que tenha adquirido o direito à estabilidade decenal antes de 1988. Do contrário, temos que referido artigo caiu em completo desuso – e esta é a posição dos tribunais há muito tempo, conforme se verifica dos julgados abaixo – um de 2006 e outro de 2019.

RECURSO ORDINÁRIO DO RECLAMANTE. MULTA PREVISTA NO ART. 478 DA CLT. O disposto no art. 478 da CLT diz respeito a antiga indenização do trabalhador que, ao completar 10 anos ininterruptos de prestação de serviços ao mesmo empregador, adquiria estabilidade no emprego, na forma do art. 492 da CLT, não sendo aplicável ao pagamento das verbas rescisórias, porquanto cada verba citada tem um cálculo próprio previsto em lei. Recurso desprovido.

(TRT 4ª Região - RO: 00208070320185040801, Data de Julgamento: 25/07/2019, 11ª Turma, Relator: Juiz Frederico Russomano)

 INDENIZAÇÃO DA MULTA PREVISTA NO ARTIGO 478 DA CLT - IMPOSSIBILIDADE. A partir de 1988 a Constituição Federal adotou o regime de FGTS. Por este regime, em lugar da indenização prevista no artigo 478, da CLT, o empregado recebe os depósitos de FGTS, acrescidos de correção monetária e juros e, se for o caso, a multa de 40%. Extrai-se dos autos que a Reclamante não era detentora de estabilidade decenal, advinda daí a impossibilidade do deferimento do pedido. Recurso não provido.

(TRT 10ª Região - RO: 01101-2005-014-10-00-9, Relatora: Desembargadora Heloisa Pinto Marques, Data de Julgamento: 13/12/2006, 2ª Turma)

           Os tribunais, nos poucos julgados disponíveis sobre o assunto, tem entendido que na falta da indenização do art. 478 da CLT, o empregador poderia deixar de pagar indenizações típicas a uma dispensa sem justa causa, e tentar imputá-las ao ente público, quando configurado o fato do príncipe que afetou a atividade privada. Nestes casos, as verbas pelas quais o Ente Público foi responsabilizado foram, especificamente, a multa de 40% sobre os depósitos de FGTS, e o aviso prévio indenizado; contudo, há divergência, em doutrina e jurisprudência sobre este último.

1.Tema: “FACTUM PRINCIPIS”. DESAPROPRIAÇÃO. RESCISÃO DO CONTRATO DE TRABALHO. RESPONSABILIDADE. AVISO PRÉVIO INDENIZADO. MULTA DE 40% DO FGTS. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.

2.Tese: Deve ser admitida a ocorrência do “factum principis” quando a rescisão do contrato de trabalho decorrer de ato da administração pública que não pode ser evitado pelo empregador, que se vê obrigado a encerrar suas atividades econômicas.

3.Síntese da Fundamentação: Nos termos do artigo 486 da CLT, “factum principis” (fato do príncipe) caracteriza-se pela paralisação temporária ou definitiva da prestação de serviços, em virtude da prática de ato administrativo por autoridade pública federal, estadual ou municipal. Trata-se de uma espécie do gênero força maior, sendo necessária para sua evidência a presença dos seguintes requisitos: ato administrativo inevitável praticado por autoridade competente; interrupção temporária ou definitiva da prestação dos serviços e não concorrência, direta ou indireta, do empregador para a prática do ato. Restou evidenciado que os empregadores não praticaram condutas capazes de configurar o aproveitamento inadequado do imóvel em epígrafe, o que não evitou, contudo, a declaração de desapropriação da propriedade pelo Poder Público, que se valeu do juízo de conveniência e oportunidade para praticar ato administrativo discricionário. Assim, deve ser admitida a ocorrência do “factum principis”, uma vez que a rescisão do contrato de trabalho decorreu de ato da administração pública que não poderia ser evitado pelos proprietários do imóvel, que se viram obrigados a encerrar suas atividades econômicas. Deste modo, a responsabilidade da Administração Pública está limitada à indenização adicional do FGTS (40%) e ao aviso prévio indenizado, sendo as demais verbas de responsabilidade dos empregadores, na medida em que a norma prevista no artigo 486 da CLT dispõe expressamente que o pagamento de “indenização” ficará a cargo da Administração Pública, o que não se confunde com a totalidade das verbas rescisórias, que permanecerá sob a responsabilidade dos recorrentes.

(TRT 3ª Região - RO: 0001757-58.2013.5.03.0036. Julgamento: 19/02/2015. Turma Recursal de Juiz de Fora/MG).

            Por fim, existem ainda, alguns entendimentos no sentido de ser a obrigação da Administração Pública limitada a metade da multa do FGTS, ou seja, 20% do valor devido ao empregado.

Entretanto, pondere-se o risco: além de ter de debater com o Ente Público sua responsabilidade em uma pandemia, seria necessário enfrentar um sem-número de reclamações trabalhistas movidas pelos empregados, que naturalmente gostariam de receber aquilo que é seu por direito. Surgiria também enorme custo com a manutenção e defesa nessas ações.

           Assim, por todos os motivos acima, entendemos que não é prudente adotar a estratégia de tentar delegar ao governo a responsabilidade pelo pagamento de verbas rescisórias – pelo menos no momento em que este artigo é redigido. Nos próximos dias, toda a iniciativa privada aguarda – e anseia – por medidas efetivas, que auxiliem o empregador a sobreviver a todo esse desafio enfrentado pela nossa sociedade.

 

 

[1] Advogado especialista em Processo e Direito do Trabalho e em Direito Acidentário. Professor em cursos de graduação e pós-graduação. Palestrante em cursos jurídicos com enfoque em Direito do Trabalho e suas correlações com o Direito Previdenciário. Sócio do escritório Martins & Masselli Sociedade de Advogados.

[2] Advogada Pós-graduada em Processo Civil. Extensão em Compliance Anticorrupção. Professora em cursos técnicos e graduação. Sócia do escritório Martins & Masselli Sociedade de Advogados.

[3] Brasil. São Paulo, São Paulo. Decreto Municipal 14.223/2006

[4] Reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020.

 

 

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