Apresentação
Os cursos deste ano de 2022 da Cátedra de Educação Advocatícia da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo, alcançam as questões éticas da profissão, estabelecendo prospecções, delineando horizontes e contribuindo para a intervenção na formação e na atuação prática de advogadas e advogados. A partir de 2020, a Cátedra desenvolveu pesquisas e reflexões em torno das questões gerais e específicas da educação advocatícia, sejam suas internalidades – assuntos formalmente educacionais, como as da graduação e da pós-graduação em direito – sejam suas externalidades – perfis profissionais, demandas econômicas, sociais, políticas, culturais, ideológicas. O conjunto de aulas e cursos deste ano de 2022 desdobrará as reflexões gerais desenvolvidas em 2020 e 2021 para alcançar, então, as possibilidades éticas e de mudança da subjetividade advocatícia e da sociedade.
No mês de janeiro de 2022, as atividades da Cátedra tratarão do tema “Ética Advocatícia”. No plano imediato, a advocacia estrutura sua eticidade a partir de balizas autorreferenciais. De modo normativo, juspositivista, há uma legalidade ética advocatícia, inscrita, fundamentalmente, no Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei nº 8.906/1994) e no Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (Resolução nº 02/2015 – CFOAB). O controle ético mediante normatização, no entanto, é atravessado materialmente pela eticidade social. A dinâmica da condição profissional da advocacia numa economia capitalista, estruturada pela exploração e por variadas dominações e opressões, faz com que os padrões concretos de ação social da advocacia sejam também derivados das contradições éticas da sociedade. Assim sendo, pensar de modo crítico uma ética advocatícia é levantar horizontes de confronto com a própria sociabilidade geral dada.
Alysson Leandro Mascaro
Objetivos
O curso “Ética advocatícia”, da Cátedra de Educação Advocatícia, tem por objetivo fornecer as bases teóricas para compreender a eticidade concreta da advocacia e, ao mesmo tempo, suas contradições e potenciais de transformação. Fornecerá balizas de interpretação crítica a estudiosos do tema e linhas de possibilidades de intervenção em busca do incremento da advocacia e das profissões jurídicas.
Ementa
1. Ética advocatícia e história. As juridicidades pré-contemporâneas; a juridicidade das formas sociais capitalistas. 2. Ética social e ética juspositivista. 3. Internalidades e externalidades da ética advocatícia. 4. Reprodução social, contradições e potenciais: eticidade advocatícia, exploração, dominações e lutas.
Conteúdo programático
27/01/2022 - Ética advocatícia.
1. Ética advocatícia e história. As juridicidades pré-contemporâneas; a juridicidade das formas sociais capitalistas.
2. Ética social e ética juspositivista.
3. Internalidades e externalidades da ética advocatícia.
4. Reprodução social, contradições e potenciais: eticidade advocatícia, exploração, dominações e lutas.
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O curso “Ética advocatícia” busca analisar o fenômeno da eticidade do direito e de sua regulação no campo da advocacia. Para tanto, é preciso ultrapassar dois costumeiros enquadramentos imediatos da eticidade advocatícia: o primeiro deles, autorreferencial ideologicamente, que louva a advocacia como profissão cuja ética é, ab ovo, a garantia da liberdade e a consecução da justiça; o segundo deles, de autorreferência prática, o da inscrição da ética advocatícia apenas nos termos das normatizações da Ordem. Na primeira das duas situações, a advocacia se escora numa afirmação que parte da normalização – ou mesmo naturalização – da sociedade existente, louvando o afazer advocatício como corolário do justo ideologicamente assentado. Na segunda das situações, a ética da advocacia se fecha em termos de uma mensuração legalista, bastando-se na analítica de procedimentos, proibições, possibilidades e deveres.
Proponho, no entanto, que se pensem os quadrantes da ética advocatícia a partir da totalidade histórica e social. Assim sendo, não há uma ética metafísica ou ideal como régua atemporal ou universal dos casos e situações. É necessário deslindar, na história, grandes movimentos de sociabilidade e ética conforme os modos de produção e as estruturações das formações sociais. Na antiguidade, em sociedades escravistas, há uma eticidade do poder direto, lastreada na força e na guerra, ou, então, nos interstícios de tal mando direto, uma ética proposta nos espaços senhoriais a partir das relações entre os raros homens livres. Na Idade Média, feudal, há um poder do senhorio que se funda em tradição e estabilidade, amalgamado a um conjunto ideológico religioso que lhe dá amparo. Desponta decisivamente aqui, então, uma ética religiosa. A Idade Moderna, com o Absolutismo, reconfigura a mesma base medieval já dada. Será o Iluminismo que romperá com tal quadro, afirmando uma racionalidade burguesa assentada no indivíduo. Com as vitórias das revoluções liberais e o surgimento de relações de produção capitalistas, a eticidade passa a se fundar na reprodução das relações de exploração e dominação: cumprimento dos contratos, respeito à propriedade privada. A legalidade estatal passa a ser instrumental de afirmação e controle. A ética se torna juspositiva.
Postulo, assim, que se compreendam dois grandes movimentos históricos relacionados a padrões de eticidade: um pré-contemporâneo, múltiplo conforme as variadas formas e formações sociais, mas tendo por base fenômenos éticos escorados em bases ideológicas externas às próprias relações sociais. Ressalvadas algumas sociedades em alguns tempos históricos específicos (alguns espaços sociais gregos e romanos e suas filosofias, por exemplo), as religiões são, via de regra, o amálgama das eticidades antigas, medievais e modernas. Já a eticidade contemporânea é tributária da reprodução social capitalista. Toma por pressuposto uma individualização das capacidades e das responsabilidades. O individualismo é seu chão e seu teto: não há uma afirmação de ética social maiúscula em face da exploração e das dominações; a eticidade é individual para situar no sujeito sua responsabilidade por seus vínculos ditos livres em face de pessoas ditas iguais. Contrato e propriedade privada são os núcleos da acumulação capitalista e, também, a métrica ética dessa sociabilidade.
A eticidade capitalista termina por ser, de modo geral, uma ética juspositivista. A instituição normativa estatal da propriedade privada, garantindo, controlando e dando talhe à dinâmica dos contratos, faz com que haja a separação entre a instância de domínio econômico e aquela de domínio político. Erige-se uma forma política estatal. O respeito à legalidade estatal passa a ser a premissa ética fundamental do capitalismo. Tal controle político estatal é a garantia da manutenção da propriedade privada. No campo da advocacia, também sua regulação passa a ser estatal. Os órgãos de classe, como a Ordem dos Advogados do Brasil no caso pátrio, tomam uma ambígua forma de autonomia misturada ao múnus público, operando a partir de competências, encargos e padrões de eticidade tanto impostos publicamente quanto autorregulados. Dessa forma de estabelecimento deriva uma imediata ética advocatícia juspositiva: o cumprimento normativo é a moldura mínima – que acaba na prática sendo máxima – da ética da advocacia. No Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei nº 8.906/1994) e no Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (Resolução nº 02/2015 – CFOAB) encontram-se inscritos os parâmetros fundamentais de tal regulação da eticidade advocatícia.
É preciso, no entanto, avançar para além de tal internalidade da ética de advogadas e advogados. Há externalidades que erigem, materialmente, o decisivo das práticas, comportamentos, valores e horizontes dos profissionais da área. mbitos profissionais, remuneratórios, oportunidades, limites e constrições sociais, ligações de classe e grupo operam um campo de prática que perfaz padrões éticos próprios, relativamente autônomos em face daqueles das internalidades que regulam normativamente a prática advocatícia. Da economia à ideologia, a eticidade da advocacia é construída a partir de tais referenciais concretos, cujas manifestações se impõem tanto para além da vontade individual (materialidade econômica) quanto, até mesmo, da consciência de advogadas e advogados (ideologia).
Por isso, a ética da advocacia só pode ser tomada em um movimento crítico. Se por um lado o conjunto das regulações explicitado no Estatuto da Advocacia e da OAB e no Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil permite uma disposição ética que garanta circunstâncias de decoro e mesmo de concorrência profissional, articulando responsabilidades, exatamente esse âmbito é aquele da subjetivação capitalista. Advogadas e advogados se constituem para uma profissão, voltada a fins econômicos de subsistência e acumulação, de tal sorte que a ética profissional acaba por ser a intervenção política de manutenção e garantia de padrões concorrenciais na prestação de serviços. Outro – e maior – horizonte de ética advocatícia é aquele que se abre para pensar o próprio papel do direito e dos juristas na reprodução social capitalista e em sua transformação. Neste sentido crítico, adentram a berlinda as instituições políticas e jurídicas e o modo de produção. O reconhecimento dos limites da advocacia é também seu mais rigoroso patamar de pensamento ético: em sendo profissionais qualificados e necessários da reprodução de uma sociabilidade exploratória e dominadora, advogadas e advogados terão por horizonte crítico maior, então, não seu aprimoramento profissional e concorrencial, e sim a transformação social.
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