Artigo
Breve apanhado sobre os aspectos Constitucionais que envolvem a produção da prova em Processo Penal
20/03/2012
- Fonte:
Ricardo César Franco - Defensor Público Assessor
Introdução Histórica:
A prova, sob um olhar estritamente prático, revela-se como o meio idôneo de apresentar ao destinatário da ação a existência, inexistência ou modificação de determinada situação fática sensível ao Direito, que influenciará no deslinde do feito.
Em olhar mais amplo, analisando a palavra enquanto vocábulo da língua portuguesa, verifica-se que esta comporta variado número de significados, desde aquele que se buscará estudar com maior vagar, notadamente vinculado à reconstrução histórica de fatos em processo criminal, até provas de resistência esportiva[1].
A plurissignificação, para além de prejudicar a objetividade de um estudo jurídico, em muito auxilia o estudioso, pois revela múltiplos conceitos que convergem em favor da construção de único conceito de caráter histórico.
Como abaixo se verificará, o vocábulo prova quer significar, num primeiro momento, um desafio. Posteriormente, a constatação de um exame da resistência física ou de evento natural para, então, atingir o significado hoje difundido, de representação verbal de um fato, reduzido a termo para fins de informar alguém (seu destinatário) sobre a ocorrência de um fato criminoso.
Tal conceito, despido de considerações científicas, reflete a visão que se tem sobre o tema desde quando é adotado o sistema de apuração de fatos (inquérito) com a finalidade de se verificar a existência de lesão a direito e da figura de seu causador.
Vale destacar que nem sempre a humanidade buscou, como hodiernamente se observa no âmbito de um processo criminal, a responsabilização de determinada pessoa com fundamento em provas (representação) de fatos considerados ilícitos pelo ordenamento jurídico.
Michael Foucault, ao tratar da busca da verdade no processo, disserta sobre duas interessantes situações, a primeira em Grécia e a segunda, que vigia no antigo Direito Germânico.
Tais exemplos ilustram práticas para resolução de conflitos baseadas na tradição, no desforço físico e/ou na composição de interesses, independentemente da apuração da autoria de uma conduta humana penalmente relevante.
Deveras, diverso do modelo penal adotado pelo Sistema Jurídico pátrio contemporâneo, o qual tem como finalidade a isolar determinadas condutas humanas, correlacioná-las a tipos legais e, mediante provas lícitas, demonstrar a autoria daquela.
No caso, revela Foucault, que
O sistema que regulamenta os conflitos e litígios nas sociedades germânicas daquela época é, portanto, inteiramente governado pela luta e pela transação; é uma prova de força que pode terminar por uma transação econômica. Trata-se de um procedimento que não permite a intervenção de um terceiro indivíduo que se coloque entre os dois como elemento neutro, procurando a verdade, tentando saber qual dos dois disse a verdade; um procedimento de inquérito, uma pesquisa da verdade nunca intervém em um sistema desse tipo. Foi desta forma que o velho Direito Germânico se constituiu antes da invasão do Império Romano[2].
Tal estado de coisas ainda se fazia presente até determinada altura da Idade Média, como novamente ressalta Foucault:
No direito feudal o litígio entre dois indivíduos era regulamentado pelo sistema da prova (épreuve). Quando um indivíduo se apresentava como portador de uma reivindicação, de uma contestação, acusando um outro de ter matado ou roubado, o litígio entre os dois era resolvido por uma série de provas aceitas por ambos e que os dois eram submetidos. Esse sistema era uma maneira de provar não a verdade, mas a força, o peso, a importância de quem dizia.
(...)
Havia, em primeiro lugar, provas sociais, provas da importância social de um indivíduo. No velho direito da Borgonha do século XI, quando alguém era acusado de assassinato podia perfeitamente estabelecer sua inocência reunindo à sua volta doze testemunhos que juraram não ter ele cometido o assassinato. O juramento não se fundava, por exemplo, no fato de terem visto, com vida, a pretensa vítima, ou em um álibi para o pretenso assassino. Para prestar juramento, testemunhar que um indivíduo não tinha matado era necessário ser parente do acusado. Era preciso ter com ele relações sociais de parentesco que garantiam não sua inocência, mas sua importância social. Isto mostrava a solidariedade que um determinado indivíduo poderia obter, seu peso, sua influência, a importância do grupo a que pertencia e das pessoas prontas a apoiá-lo em uma batalha ou em um conflito. A prova da inocência, a prova de não se ter cometido o ato em questão não era, de forma alguma, o testemunho[3].
Deve-se considerar, para melhor compreensão da realidade acima ilustrada, o estágio de desenvolvimento do direito penal e da sociedade que por este era regida. Maximiliano Führer assevera que
O (...) direito germânico (...) baseava-se na vingança privada individual (delitos privados) e na chamada “perda da paz” (delitos públicos), onde o criminoso era perseguido por todos e poderia ser morto por qualquer integrante do grupo. O antigo direito oral começou a ser codificado por volta do ano 450, antes ainda da queda de Roma. Com a consolidação da autoridade nas mãos dos chefes locais e o germe da estrutura estatal, surgiu um sistema novo de pagamento do preço pela paz, que evoluiu para um curioso tabelamento legal. No início, o pagamento destinava-se à reparação e satisfação do ofendido. Depois passou a ser um pagamento ao rei, tal qual a moderna pena de multa[4].
Nessa época, quando as trevas se impunham sobre a humanidade, suficientes eram conclusões advindas da superstição para que determinada lide fosse resolvida em favor de determinada pessoa, ou, ainda, vincular seu resultado ao sucesso em confronto físico ou em prova de resistência. Não são desconhecidos os métodos dos quais se utilizavam os inquisidores, mormente vinculados a torturas físicas.[5]
Foucault, mais uma vez, ao denotar a existência de sistemas de provas não factuais, assevera o caso das de cunho mágico-religiosas de juramento, que embalaram o velho mundo antes do reencontro do sistema de inquérito.
As ordálias, ou ordálios, compõem tal seguimento e se caracterizam como
... provas corporais físicas (...) que consistiam em submeter uma pessoa a uma espécie de jogo, de luta com seu próprio corpo, para constatar se venceria ou fracassaria. Por exemplo, na época do império Carolíngio havia uma prova célebre imposta a quem fosse acusado de assassinato, em certas regiões do norte da França. O acusado devia andar sobre ferro em brasa e, dois dias depois, se ainda tivesse cicatrizes, perdia o processo. (...) Todos estes afrontamentos do indivíduo ou de seu corpo com os elementos naturais são uma transposição simbólica, cuja semântica deveria ser estruturada, da própria luta dos indivíduos entre si. No fundo, trata-se sempre de uma batalha, trata-se sempre de saber quem é o mais forte No velho Direito Germânico, o processo é apenas a continuação regulamentada, ritualizada da guerra[6].
Tal estado de coisas evoluirá, não sem antes se fixar em incontáveis sociedades de antanho[7]. A evolução ocorreu a partir de meados do século XII, conforme a lição do autor francês:
Toda a segunda metade da Idade Média vai assistir à transformação dessas velhas práticas e à invenção de novas formas de justiça, de novas formas de práticas e procedimentos judiciários. (...) O que foi inventado nessa reelaboração do direito é algo que, no fundo, concerne não tanto aos conteúdos, mas às formas e condições de possibilidade do saber. (...) Essa modalidade de saber é o inquérito que apareceu pela primeira vez na Grécia e ficou encoberto depois da queda do Império Romano durante vários séculos. O inquérito que ressurge nos séculos XII e XIII é, entretanto, de tipo bastante diferente daquele cujo exemplo vimos em Édipo[8].
Como claramente expõe o autor, a (positiva) evolução pela qual foi submetido o processo criminal bárbaro, ainda em era obscura, consistiu em conceder à prova, enquanto conceito, o caráter de instrumento ideal para o deslinde de um fato, não enquanto certeza empírica, mas como instrumento capaz de demonstrá-lo aos olhos de um intérprete. Trata-se do primeiro passo para compreender o conceito de prova atualmente comportado pelo Ordenamento Jurídico pátrio.
Da Conformação do Texto Constitucional ao Tema:
De modo a prestigiar o histórico democrático que empolga a instituição do Tribunal do Júri, a Constituição cidadã o prevê como garantia fundamental[9], atribui soberania aos seus vereditos e, diferentemente da defesa exercida perante os juízos singulares, que é ampla, define-a como plena (CF/88, Art. 5º, XXXVIII, a).
Essa constatação não é destituída de propósito e, em verdade, revela-se como vigoroso argumento defensivo durante a fase do judicium causae e, relativamente, em sede recursal, como supedâneo daquele, como forma de proteger a produção de provas e sua avaliação pelo julgador.
Segundo a lição de Guilherme de Souza NUCCI, tal diferenciação não é destituída de sentido e revela a consciência da lei diante as peculiaridades da instituição do júri, notadamente vinculada à marcante oralidade que define a fase de judicium causae e à presença de juízes leigos para análise dos fatos provados:
Aparentemente, parece tratar-se de uma superfetação, pois o indivíduo levado a julgamento pelo Tribunal do Júri é um acusado e já estaria garantido a ele o direito a ampla defesa, como previsto no inciso LV. Por outro lado, pode-se dizer que o constituinte enganou-se e mencionou duas vezes o mesmo princípio-garantia. (...) Não seria o constituinte tomado de tamanha leviandade e falta de revisão na redação de um único artigo: é evidente que pretendeu inserir – e o fez – os dois princípios, até mesmo com redações diferentes: ampla defesa (inciso LV) e plenitude de defesa (inciso XXXVIII, a). (...) no cenário do júri, onde a oralidade é essencial e a imediatidade, crucial, não se pode conceber a instituição sem plenitude de defesa. Portanto, apesar de ser uma garantia de o acusado defender-se com amplidão, é característica fundamental da instituição do júri que a defesa seja plena. Um tribunal popular, onde se decide por íntima convicção, sem qualquer motivação, sem a feição de ser uma tribuna livre, especialmente para o réu, não é uma garantia individual, ao contrário, é um fardo dos mais terríveis[10].
A enunciação formal isolada, todavia, não permite o exercício real de um direito, ou afirmação de uma garantia, por seu destinatário, senão quando a esta é aderida fórmula essencial cujo conteúdo esteja repleto de mandamentos constitucionais.
Dessa forma, imperiosa a tarefa de construir conceito condigno com os preceitos democráticos enunciados pelo Texto Maior.
Interessante contribuição pode ser encontrada na referida obra de NUCCI, para o qual
... no tribunal popular, a plenitude de defesa é característica expressiva e essencial da própria instituição. Júri sem defesa plena não é um tribunal justo e, assim não sendo, jamais será uma garantia ao homem.
(...)
Um tribunal que decide sem fundamentar seus vereditos precisa proporcionar ao réu uma defesa acima da média e foi isso que o constituinte quis deixar bem claro, consignando que é qualidade inerente ao júri a plenitude de defesa. (...) No plenário certamente está presente a ampla defesa, mas com um toque a mais: precisa ser, além de ampla, plena. Os dicionários apontam a diferença existente entre os vocábulos: enquanto amplo quer dizer muito grande, vasto, largo, rico, abundante (...), pleno significa repleto, completo, absoluto, cabal, perfeito[11].
Intimamente relacionado à temática das provas, encontra-se o referido princípio, o qual, somado aos da dignidade humana, legalidade, devido processo legal, vedação da prova ilícita, etc., norteará a construção da verdade judiciária, idônea e bastante para um deslinde com análise do mérito da imputação deduzida na denúncia.
Contemporaneamente, não se pode admitir exegese outra das normas processuais, com especial atenção às processuais penais, senão aquela que se pauta conforme os ditames da Constituição Federal e do Estado de Direito.
A interação entre o Texto Magno e as normas infraconstitucionais que regem o processo (não apenas o penal), como recorda Antônio Scarance FERNANDES, constitui verdadeiro Direito Processual Constitucional.[12].
Conclusão:
Garantias e direitos fundamentais permeiam as normas de processo impondo rigores e cuidados à figura do Magistrado[13], prerrogativas e ônus às partes[14]. Se eventualmente não se puder extraí-los da própria redação dos dispositivos legais, interpretação extensiva permitirá incluí-los no estudo empreendido de maneira a permitir inteira compreensão dos limites da norma.[15]
A temática da prova no processo penal não foge à incidência dos comandos constitucionais, afirmando-se, na verdade, como pólo de atração daqueles dispositivos.
Guilherme de Souza Nucci leciona a relevância da compreensão e aplicação dos princípios e normas constitucionais na prática processual penal:
Deve-se conceder à Constituição Federal, em seu amplo feixe de princípios, direitos e garantias humanas fundamentais, a prevalência sobre toda e qualquer disposição ordinária (...), para que se ergam as sólidas bases de um Estado Democrático de Direito, em especial, nas searas penal e processual penal, cujos valores e institutos vinculam-se, estreitamente, à dignidade da pessoa humana[16].
O respeito à roupagem dedicada às provas, resultante da análise conjunta com os princípios acima referidos, conferirá legitimidade ao procedimento, com a salvaguarda dos direitos inerentes às partes na demonstração dos fatos jurídicos e da submissão equilibrada dos ônus.
[1] Cf. verbete provas, do dicionário Caudas Aulete.
[2] FOUCAULT, Michel : A Verdade e as Formas Jurídicas. 3.ed. Rio de Janeiro. Nau Editora; 2008. P. 57/58. Grifos Nossos.
[3] Op. Cit. p. 58/59.
[4] FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto: História do Direito Penal. São Paulo. Malheiros; 2005. P. 40.
[5] Em Malleus Maleficarum, Kramer e Spreger indicam aos inquisitores as formas de, negada que foi pela ré a autoria do crime de heresia, obter-se a prova necessária para condená-la: Finally, if he sees that she will not admit her crimes, he shall ask her whether, to prove her innocence, she is ready to undergo the ordeal by red-hot iron. And they all desire this, knowing that the devil will prevent them from being hurt; therefore a true witch is exposed in this manner.
[6] Op. Cit. P.60.
[7] J. ORTOLAN , por fim, ao se referir sobre a natureza da prova nos processos criminais, aduziu que: Le principe inauguré à ce sujet par les lois de la Constituante est celui des preuves de consciencia, ou preuves de conviction personelle. Ce principe était nouveau chez nous. Le systeme accusatoire de l´ere barbara et de l´ere féodale avait eu les preuves de supersticion ou de force armeé, dans les ordalies ou dans le combat; la procedure inquisitoriale y avait substitué les preuves légales; aprés notre grande révolution viennent les preuves de conscience.
[8] Cf. Foucault, Op. Cit. P. 62/63.
[9] “... o Tribunal do Júri é – em primeiro plano – uma garantia individual formal e, mesmo sem muita coerência com o sistema de aplicação de leis adotado no país (direito codificado), jamais pode ser desprezado ou colocado em plano inferior. Afinal, fixou-se posição, anteriormente, no sentido de que, seja material, seja formal, quando o constituinte elege algum direito ou garantia à categoria de fundamental, deste modo deve ser respeitado e tratado no contexto normativo. Portanto, sendo a instituição do júri uma garantia individual da pessoa humana – e secundariamente um direito individual (...). NUCCI, Guilherme de Souza: Júri – Princípios Constitucionais. São Paulo. Juruá; 1999, p. 57).
[10] Op. Cit. P. 139/140.
[11] Op. Cit. p. 140.
[12] FERNANDES, Antônio Scarance: Processo Penal Constitucional. 5.ed. São Paulo. Revista dos Tribunais; 2007. P. 21.
[13] “Num Estado Democrático onde os vários poderes necessários à sustentação do próprio Estado são cada vez mais expansivos, a razão de ser de um órgão jurisdicional que garanta, sem limites, a manutenção dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos num patamar constitucional previamente assumido é no fundo a concretização da ‘janela da liberdade’ absolutamente necessária à democracia”. LOPES, José Mouraz: Garantia Judiciária no Processo Penal. Do Juiz e da Instrução. Coimbra. Coimbra Editora; 2000, p. 7.
[14]Analisado de acordo com as exigências decorrentes dos direitos e garantias fundamentais, verifica-se que o direito à prova apresenta certas exigências. O eventual desrespeito nulificaria o ato ou, em determinados casos, o próprio feito, haja vista o cerceamento à produção probatória necessária às partes. SCARANCE FERNANDES, citando BARBOSA MOREIRA, GOMES FILHO e TROCKER, apresenta rol específico de tais exigências, além das conseqüências advindas da não-observação: 1) dedicar iguais condições às partes na produção da prova; 2) igualdade, para as partes, na participação dos atos probatórios e manifestação sobre seus resultados; 3) proibição de o juiz se utilizar de fatos que não foram previamente submetidos a debate das partes; 4) proibição de se utilizar elementos de informação colhidos extra-autos ou na ausência das partes; 5) que a prova regularmente colhida seja objeto de posterior apreciação judicial, para a formação do convencimento do magistrado; 6) que a prova colhida ao arrepio da norma material ou processual seja excluída dos autos, dentre outros. Tais asserções, conforme se depreende da leitura de seus enunciados, encontram suporte nos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, além da vedação às provas ilícitas e ilegítimas (Idem; Ibdem, p. 79/81).
[15] Tal entendimento, pacífico na doutrina pátria, foi verbalizado por SCARANCE FERNANDES, com o brilhantismo de sempre, ao afirmar que liga-se o direito à prova estritamente aos direitos de ação e de defesa. De nada adiantaria a autor e réu o direito de trazer a juízo suas postulações se não lhes fosse proporcionada oportunidade no desenvolvimento da causa para demonstrar suas afirmações. Apresenta, em decorrência de tal ligação, a mesma natureza dos direitos de ação e de defesa, ou seja, um direito subjetivo público e cívico. Por outro lado, tem o juiz importante papel na produção da prova. Para que possa proferir decisão justa e conforme a realidade, deve instruir a causa mediante efetiva participação na realização do material probatório, seja no garantir às partes a plenitude do direito à prova, seja no determinar, de ofício, a efetivação de prova relevante (idem, ibdem, p. 78).
[16] Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. São Paulo. Revista dos Tribunais; 2010. P. 397.