Artigo
A falta que o decano faz
19/10/2020
- Fonte:
ESA/OABSP
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A falta que o decano faz
Rodrigo de Abreu Pinto[1]
19/10/2020
Talvez seja cedo para medir a falta que o ministro Celso de Mello fará. Tampouco há tempo para lamentar as perdas no momento em que o presente ameaça multiplicá-las. Sendo que é difícil ignorar a ausência do decano cuja serenidade despontou oportunamente, por mais de 30 anos, como uma constelação na noite escura da República. Será difícil assimilar o Supremo Tribunal Federal sem o recém-aposentado Celso de Mello, e o mesmo vale para o esforço inútil de imaginá-lo afastado do tribunal onde varou as madrugadas e dedicou-lhe um esforço do tamanho de um país.
O compromisso com a integridade dos direitos fundamentais, a proteção contra condutas governamentais abusivas, o cumprimento dos pacotes internacionais de direitos humanos: marcas da jurisprudência construída pela sua caneta que ajudaram a construir o Brasil que então conhecemos. Tão logo vem à mente seus votos memoráveis pela liberação das pesquisas com células-tronco e pela antecipação do parto de feto anencefálico. A marcante relatoria de Celso de Mello em decisões simbólicas como a criminalização da homofobia e a legalidade da marcha da maconha. Uma trajetória eternizada em longos votos que o tornaram não só o ministro mais sensível, mas sobretudo o mais implicado na garantia dos direitos fundamentais - em especial das minorias - pelos quais pesaram sua defesa intransigente das cotas de cunho racial e da demarcação das terras quilombolas e indígenas.
Despeço-me de Celso discutindo a sua importância institucional que acompanhou e participou das transformações do Supremo desde 1989, ano em que o paulista de Tatuí se tornou ministro e a Constituição não tinha sequer um ano de vida. A sociedade brasileira então vibrava pela promulgação do avançado texto constitucional pela Assembléia Constituinte, presidida por Ulysses Guimarães, e símbolo da democracia que só ali nascia após 25 anos de ditadura militar. Celso de Mello foi nomeado pelo presidente José Sarney muito em função da sua famosa obra lançada há pouco, Constituição Federal Anotada (1984), onde estudou a constituição anterior e despontou a vaga no Supremo como importante constitucionalista, uma característica até então rara numa corte em que abundavam os civilistas.
A Constituição de 88 extremou o papel do Supremo à vista de que constitucionalizou vários temas da vida social, além de ter multiplicado os atores capacitados a arguir a constitucionalidade de leis e medidas perante a corte (art. 103). Até então, essa prerrogativa de propor ações ao Supremo cabia apenas ao Procurador-Geral da República, cargo de confiança do presidente da República, o que a tornava não mais que um instrumento do Executivo para o controle das leis indesejadas e por ventura aprovadas pelo Legislativo. Mas dali em diante, ao contrário, o STF teria maior independência e poder de iniciativa - muito embora não seria do dia para a noite que a corte estaria à altura dos novos desafios, inclusive porque o corpo ministerial ainda era formada majoritariamente pelos ministros nomeados durante o regime militar. Naquela altura, além de Celso de Mello, apenas Paulo Brossard e Sepúlveda Pertence tinham ingressado após o fim dos anos de chumbo. Ao passo que os antigos ministros - em especial os destacados Moreira Alves, Octavio Gallotti e Sydney Sanches - atuavam para limitar as mudanças urdidas pela Constituição recém-provada, o novato Celso de Mello, junto a Brossard e Pertence, agiam como arautos da nova ordem, ainda que como votos vencidos.
Os novos tempos, sabia Celso, exigiam um Supremo muito além do tribunal acanhado que esse fora até então. Era o único jeito de “forjar no povo o sentimento constitucional, construindo a visão de que todos estamos submetidos ao domínio normativo da Constituição”, como ele mesmo dizia, para o que importava o exercício contramajoritário da corte ao evitar que os presidentes e as maiorias legislativas desfigurassem ou retardassem a efetivação dos direitos inscritos na carta, sobretudo no que essa superava os entulhos autoritários da ordem que sucedia. Celso de Mello, por isso, fazia questão de incluir em seus votos a defesa do Supremo como instituição, atuando como “o vocalizador do poder do Supremo”, nas palavras de Diego Werneck, principalmente ao longo dos anos noventa em que a autoridade do tribunal foi sendo construída longe dos olhos da imprensa. Se o constitucionalismo foi um dos grande vitoriosos do colapso da ditadura militar, muito disso é devido a Celso de Mello e seus votos disciplinados e apaixonados ao mesmo tempo, nos quais se nota a insistência quase espartana em usar os precedentes do próprio Supremo na construção das suas posições - um hábito que por ora parece natural, mas é consequência da tradição construída ao longo dos anos e inspirada pelo decano.
Após uma passagem discreta pela presidência do Supremo (1997-99), Celso de Mello se tornaria decano do tribunal em 2007, justo na altura em que o STF assumia um protagonismo inédito na história do país - em consequência do julgamento do Mensalão - quando o acanhamento seria radicalmente subvertido pelo papel ativo que o Supremo assumiu e advém até hoje. O paradoxo, no entanto, é que a situação não parecia oportuna para a emergência de uma liderança institucional tal qual se tornaria Celso. A tensão política do país era crescente. A cobertura da mídia, incluindo a transmissão dos julgamentos pela TV Justiça, era inédita e ostensiva. A vaidade dos ministros não só crescia como encontrava respaldado nos poderes excepcionais a disposição de cada ministro individualmente (como as decisões monocráticas e os pedidos de vista). Uma série de fatores, afinal, tendentes a ressecar qualquer autoridade, ainda mais a do decano que nem de longe possui as prerrogativas regimentais do presidente da Corte, por exemplo.
Foi justamente diante dessa corte, dali em diante tornada epicentro dos conflitos do país, que Celso de Mello construiu sua liderança e revolucionou o decanato ao torná-lo muito mais do que meramente regimental, pois uma posição política de relevo. Celso de Mello se lançou a uma posição de influência em razão da sua antiguidade, mas que só a manteve ao longo dos anos pela autoridade conquistada e continuamente preservada. Antes dele, Moreira Alves foi decano por 14 anos (1989-2003) e nunca fora conhecido como “decano”, o mesmo ocorrendo com Djaci Falcão que foi por 12 anos o mais velho da Corte (1977-89), como lembrou o pesquisador Felipe Recondo.
O ministro Celso de Mello abandonou a postura mais discreta de quem só falava através dos autos para, a partir de então, assumir o papel de representante institucional da corte, inclusive com posições e comentários extra-autos. O que jamais transbordou para a insólita posição de ministro que atravessa a Praça dos 3 Poderes, aproxima-se da mídia de maneira imprópria, pratica a defesa corporativa da classe de magistrados ou, não menos pior, advoga o ativismo iluminista da corte que decanamente representa. Se o ministro Gilmar Mendes, e agora Dias Toffoli, são tidos como os ministros mais políticos da corte, no sentido pejorativo do termo, Celso de Mello é o mais institucional - e daí a preocupação com o fato de que Gilmar Mendes, logo após a pronta aposentadoria de Marco Aurélio, será o decano do Supremo pelos próximos 10 anos (2021-30).
No no interior do tribunal, onde o decano exerce o papel de votar por último, Celso sempre escutou atentamente os votos dos demais ministros enquanto esperava a sua vez, quando daria um voto capaz de fertilizar os argumentos expostos até então. Como prova de sua independência, o ministro jamais integrou algum dos grupos “ideológicos”, mantendo-se equidistante - e não raro intervindo como árbitro - nas disputas entre garantistas e iluministas que marcaram os julgamentos do Mensalão e Lava Jato, os dois mais importantes da história do tribunal. A posição do decano, em ambos os casos, foi extremamente firme: iluminista a ponto de julgar os crimes de colarinho branco e contrariar o lenitivo simbólico que até então salvaguardava as elites políticas e empresariais do país quanto aos crimes cometidos; mas garantista o suficiente para jamais abrir mão do devido processo legal e das garantias dos acusados em todas as etapas do processo, tal como o próprio fizera na importante defesa do mandato de injunção e dos embargos infringentes durante o Mensalão, além da presunção de inocência até o trânsito em julgado durante a Lava Jato.
Com a eleição do presidente Jair Bolsonaro, o seu papel institucional se tornou ainda mais imprescindível, e o próprio Celso, melhor do que ninguém, entendeu isso e prontamente assumiu as rédeas - basta lembrar das defesas intransigentes da corte e da Constituição nas ocasiões em que respondeu o coronel da reserva que afrontou Rosa Weber; ou o General Heleno que endereçou uma nota intimidativa ao Supremo; ou o filho do presidente que ameaçou fechar o STF com ‘um jipe e um soldado’, quando Celso então o lembrou que “votações expressivas do eleitorado não legitimam investidas contra a ordem político-jurídica fundada no texto da Constituição”. Foram vezes em que coube ao decano chamar a responsabilidade para si e ratificar o sentimento constitucional com as devidas palavras e tom de voz, de um jeito que só ele sabe dizer a ponto da sociedade logo compreender o que está em questão. Se não fosse pelo brio do ministro Celso de Mello em seus dois últimos anos na corte, dificilmente teríamos visto a rara coesão entre os ministros pela qual o Supremo recuperou ao menos parte da sua autoridade e função estabilizadora para coibir os excessos autoritários do governo Bolsonaro.
Foi em tal contexto que o ministro Celso se despediu da Corte, não sem antes receber homenagens de todos os seus pares, através das quais ficou evidente que o decano se tornou uma excelsa unanimidade entre os ministros e, por que não, entre os brasileiros - com a óbvia exceção dos inimigos da Constituição, tão só preocupados em sujeitar o Supremo e assim mitigar o sentimento constitucional. É contra isso, e não outra coisa, que a memória do decano Celso de Mello vigerá para sempre e viva.
[1] Graduado em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e graduando do 3º ano de direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). (rdeabreupinto@gmail.com)