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30 ANOS DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

13/07/2020 - Fonte: ESA/OABSP

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30 ANOS DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Gabriela Marcassa Thomaz de Aquino[1]

Olívia de Quintana Figueiredo Pasqualeto[2]

                           

A promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 13 de julho de 1990, significou a consolidação da mudança do tratamento jurídico dispensado às crianças e adolescentes no Brasil. Tal mudança já se iniciara anos antes, ainda na Constituinte, quando uma articulada iniciativa popular se mobilizou em torno da aprovação do art. 227 da Constituição Federal de 1988.

            O art. 227, CF, significou a ruptura com a doutrina penal do menor, doutrina esta representada fortemente pelo Código de Menores e subsidiada na visão de que os menores eram os abandonados e delinquentes, que deveriam ser tutelados pelo direito penal.

O art. 227, CF, vem colocar no centro das preocupações constitucionais o direito das crianças e adolescentes, inaugura o sistema de proteção integral e prioridade absoluta e coloca como dever da família, do Estado e da sociedade a preocupação com a efetivação dos direitos dessas pessoas em desenvolvimento.

Em 1990, como forma de efetivar os princípios constitucionais (prioridade absoluta e proteção integral), é promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que prescreve o dever de priorizar esses indivíduos em quatro esferas: a) recebimento de proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) atendimento nos serviços públicos  ou de relevância pública; c) formulação e execução de políticas sociais públicas e d) destinação privilegiada de recursos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.[3]

Passados 30 anos de vigência muito já foi feito, mas ainda é preciso fazer muito mais. O Estatuto da Criança e do Adolescente rompeu juridicamente com a lógica do menorismo, no entanto, em nível social, esta lógica ainda pode ser facilmente encontrada nos discursos pela diminuição da idade penal ou pela diminuição da idade mínima para o trabalho. O estigma dos “menores” ainda persegue grande parcela das crianças e adolescentes brasileiros na falácia, por exemplo, “de que é melhor trabalhar do que roubar”.

Esse discurso coloca como opção às crianças mais pobres apenas duas alternativas: o trabalho ou o crime. Tal discurso é o mesmo que alicerça os pedidos de diminuição da idade mínima penal e para o trabalho, desconsiderando completamente o fato de que já não vivemos mais sob a égide do Código de Menores, que crianças e adolescentes não são considerados abandonados e delinquentes e que temos uma outra opções fora do binômio trabalho crime: educação de qualidade.

            Apesar dessa cultura do menorismo que ainda nos assola, muito já foi feito e deve ser comemorado. Segundo relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) elaborado em 2019, o Brasil se destacou nas últimas décadas por conta da diminuição da mortalidade infantil (morte de crianças de até 1 ano), entre 1990 e 2017 a taxa de mortalidade caiu de 47,1 para 13,4 mortes para cada mil nascidos vivos. A mortalidade na infância (morte de crianças até 5 anos) também seguiu esta tendência de diminuição, passando de 53,7 óbitos, em 1990, para 15,6 óbitos, em 2017, uma redução de 71%.[4]

            Outro avanço significativo foi em relação à desnutrição, que até a década de 1990 atingia grande parte dos grupos populacionais mais pobres do Brasil. No relatório, o Unicef identificou que, entre 1996 e 2006, a desnutrição crônica (medida pela baixa estatura da criança para a idade) apresentou redução, passando de 13,4% para 6,7% das crianças com idade inferior a cinco anos. O relatório identificou ainda que, embora tenha havido progresso nessa área, as desigualdades entre as crianças indígenas ainda é um fator preocupante.[5]

            Outra área de avanço foi a da educação, com a ampliação do ensino fundamental para nove anos e o aumento da idade escolar obrigatória para a educação básica para a faixa de 4 a 17 anos.[6] Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) indicam que, entre 1990 e 2017, o índice de crianças e adolescentes fora da escola passou de 19,6% para 4,7%. A taxa de analfabetismo entre 10 e 18 anos passou de 12,5%, em 1990, para 1,4%, em 2013[7]. Há, no entanto, um longo caminho a se percorrer para garantir que todas as crianças e adolescentes estejam estudando.

            Outro índice que teve avanço significativo foi o referente ao trabalho infantil. Entre 1992 e 2015, foram retirados do trabalho precoce, 5,7 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos, o que, segundo a Pnad de 2015, representaria uma redução de 68%.[8] Sobre o combate ao trabalho infantil, no entanto, é preciso citar que algumas dificuldades têm sido encontradas nos últimos anos: baixo número de Auditores Fiscais do Trabalho, corte de orçamento para fiscalização do trabalho, extinção do Ministério do Trabalho, tentativa de desarticulação do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA).[9] Todos esses fatores somados podem impactar significativamente o combate do trabalho infantil no país ao longo dos próximos anos.

            Em muito, todos esses avanços são reflexos da intensa articulação e produção normativa que ocorreu no final da década de 1980 e início da década de 1990. Nesse período, especialmente para o contexto brasileiro, se destacam a Constituição Federal de 1988 (e seu artigo 227), a Convenção sobre os direitos da criança de 1989 e o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990.

            Outros pontos, no entanto, ainda precisam avançar. Segundo o Unicef, embora o Brasil tenha progredido em muito pontos, uma área sensível e que o país não tem obtido sucesso diz respeito ao homicídio de crianças e adolescentes. Essa forma perversa de violação de direitos tem características visíveis: “a maioria é composta de meninos negros, pobres, que vivem nas periferias e áreas metropolitanas das grandes cidades” [10], marcados pela evasão escolar e pelo trabalho infantil. Os dados mostram que as taxas de homicídio de crianças e adolescentes crescem mais do que as taxas relativas aos adultos. Contudo, apesar dessas taxas, “orçamentos e políticas de prevenção e promoção da inclusão social de meninas e meninos tornam-se cada vez mais limitados” no país[11].

            A mudança desse cenário é um dos muitos desafios que o Brasil tem pela frente. A relação entre evasão escolar, trabalho infantil e violência contra crianças e adolescentes possui alguns denominadores comuns, que precisam ser levados em conta: a ampliação do acesso e permanência dos estudantes na escola, a fim de garantir o direito à educação; aprofundamento da análise sobre os motivos da evasão escolar, procurando soluções que considerem diferentes fatores de forma mais interdisciplinar; aumento da produção e do acesso a dados sobre o tema, especialmente em relação à população mais vulnerável, tais como  crianças indígenas, com deficiência e em situação de rua; o incentivo a programas e instituições que viabilizem e facilitem a transição escola-trabalho de forma segura.

            Além da vida e segurança de crianças e adolescentes, a saúde, nas suas mais diversas dimensões, também é um tema que preocupa. Embora o Brasil tenha se destacado na redução da mortalidade infantil entre os anos 1990 e 2017, notou-se nos últimos anos uma oscilação em relação aos dados de mortalidade infantil, bem como uma queda na imunização por meio das vacinas. Até o ano de 2015, o Brasil mantinha a cobertura de vacinas básicas como a tríplice viral, por exemplo, acima dos 90%. No entanto, “desde então, tem sido registrada uma tendência de queda na maior parte do país, o que abre espaço para a volta de doenças que, ate´ então, estavam erradicadas”[12].

Paralelamente à queda da vacinação, novos desafios surgiram: doenças transmitidas por vetores como zika vírus se multiplicaram, causando adoecimento em recém-nascidos; houve também o aumento no consumo de alimentos ultraprocessados, ricos em açúcares e gorduras, elevando os índices de obesidade infantil e doenças como diabetes e colesterol.

Ademais, merecem atenção desafios globais que também se fazem presente no Brasil: agravamento da crise climática; migrações; conflitos armados; desinformação; aumento das doenças mentais em jovens; ampliação do acesso a novas tecnologias, que trazem benefícios, mas também podem ser utilizadas de forma negativa, a exemplo do espraiamento das notícias falsas (fake news); e, mais recentemente, a pandemia de Covid-19. Embora as crianças e adolescentes não sejam a maioria das mortes pelo novo coronavírus, a crise econômica e social gerada pela calamidade podem impactar o presente e o futuro de milhares de jovens.

Como visto, avançamos significativamente em relação a alguns aspectos no sentido de efetivar os princípios constitucionais da prioridade absoluta e proteção integral da criança e do adolescente, o que, certamente, são motivos de celebração nesses 30 anos do ECA. Contudo, a celebração precisa estar acompanha de um processo sério e comprometido de avaliação (do que já foi feito), reflexão e proposição de políticas públicas e ações para que os problemas ainda não superados possam ser, gradativamente, eliminados. O apoio a instituições dedicadas ao tema é essencial para construirmos uma rede de cuidado fortalecida, integrada ao sistema de justiça e mais protetiva.

 

Referências

AQUINO, Gabriela Marcassa Thomaz de. Trabalho infantil e as Convenções da OIT: ações fiscalizatórias e a atuação da Justiça do Trabalho. Belo Horizonte: Arraes, 2020.

NOGUEIRA, Eliana dos Santos Alves et al. 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente: a proteção integral sob a ótica do direito e do processo do trabalho. Belo Horizonte: RTM, 2020.

OIT. Trabalho infantil. Disponível em:< https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-infantil/lang--pt/index.htm> Acesso em: jul.2020.

UNICEF. 30 anos da Convenção sobre os direitos da criança. 2019. Disponível em:< https://www.unicef.org/brazil/sites/unicef.org.brazil/files/2019-11/br_30anos_cdc_relatorio.pdf> Acesso [1] UNICEF. ECA 25 anos: Avanços e desafios para a infância e a adolescência no Brasil. Brasília: UNICEF, 2015.

 

 

 

 

                                               



[1] Doutoranda e Mestra em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Graduada em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Pesquisadora junto ao Núcleo de Estudos “O Trabalho além do Direito do Trabalho”, vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e junto ao Núcleo de Pesquisa e Observatório Jurídico: (Re)pensando o Direito do Trabalho Contemporâneo, vinculado à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista. Membra das Comissões Especiais de Direitos Infantojuvenis e do Direito do Trabalho da OAB-SP.

[2] Doutora e Mestra em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos “O trabalho além do trabalho: dimensões da clandestinidade jurídico-laboral” desenvolvido na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogada. Membro da Comissão Especial de Direito do Trabalho da OAB-SP. Professora da Universidade Paulista e da Universidade São Judas Tadeu. Pesquisadora da Escola Superior da Advocacia de São Paulo.

[3] NOGUEIRA, Eliana dos Santos Alves et al. 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente: a proteção integral sob a ótica do direito e do processo do trabalho. Belo Horizonte: RTM, 2020.

[4] UNICEF. 30 anos da Convenção sobre os direitos da criança. 2019. p. 20-22. Disponível em:< https://www.unicef.org/brazil/sites/unicef.org.brazil/files/2019-11/br_30anos_cdc_relatorio.pdf> Acesso em: jul. 2020.

[5] Ibid, p.22.

[6] Ibid, p.23.

[7] UNICEF. ECA 25 anos: Avanços e desafios para a infância e a adolescência no Brasil. Brasília: UNICEF, 2015.

[8] OIT. Trabalho infantil. Disponível em:< https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-infantil/lang--pt/index.htm> Acesso em: jul.2020.

[9] AQUINO, Gabriela Marcassa Thomaz de. Trabalho infantil e as Convenções da OIT: ações fiscalizatórias e a atuação da Justiça do Trabalho. Belo Horizonte: Arraes, 2020.

[10] UNICEF. 30 anos da Convenção sobre os direitos da criança. 2019. p. 29. Disponível em:< https://www.unicef.org/brazil/sites/unicef.org.brazil/files/2019-11/br_30anos_cdc_relatorio.pdf> Acesso em: jul. 2020.

[11] UNICEF. 30 anos da Convenção sobre os direitos da criança. 2019. p. 30. Disponível em:< https://www.unicef.org/brazil/sites/unicef.org.brazil/files/2019-11/br_30anos_cdc_relatorio.pdf> Acesso em: jul. 2020.

[12] UNICEF. 30 anos da Convenção sobre os direitos da criança. 2019. p. 39-40. Disponível em:< https://www.unicef.org/brazil/sites/unicef.org.brazil/files/2019-11/br_30anos_cdc_relatorio.pdf> Acesso em: jul. 2020.

 

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