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DEFINIÇÕES EM CIDADANIA CULTURAL

26/05/2020 - Fonte: ESA/OABSP

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DEFINIÇÕES EM CIDADANIA CULTURAL

 

Raíssa Moreira L. M. Musarra[1]

 

O sentido de “cultura” que melhor se relaciona aos chamados direitos culturais, constituintes do que aqui entendemos como cidadania cultural, tem como referência a definição adotada por Chauí:

Cultura é, pois, a maneira pela qual os humanos se humanizam e, pelo trabalho, desnaturalizam a natureza por meio de práticas que criam a existência social, econômica, política, religiosa, intelectual e artística. O trabalho, a religião, a culinária, o vestuário, o mobiliário, as formas de habitação, os hábitos à mesa, as cerimônias, o modo de relacionar-se com os mais velhos e os mais jovens, com os animais e com a terra, os utensílios, as técnicas, as instituições sociais (como a família) e políticas (como o Estado), os costumes diante da morte, a guerra, as Ciências, a Filosofia, as artes, os jogos, as festas, os tribunais, as relações amorosas, as diferenças sexuais e étnicas, tudo isso constitui a cultura como invenção da relação com o Outro – a natureza, os deuses, os estrangeiros, as etnias, as classes sociais, os antepassados, os inimigos e os amigos. (CHAUÍ, 2006, p. 113-114.)

 

A Recomendação da Década do Desenvolvimento Cultural, da UNESCO (1988–1997), que resultou da Conferência do México, em 1982, estabelece que cultura:

 

É o conjunto dos traços distintivos espirituais, materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade e um grupo social. Ela engloba, além das artes e das letras, os modos de vida, os direitos fundamentais do ser humano, os sistemas de valores, as tradições e as crenças. Concorda também que a cultura dá ao homem a capacidade de refletir sobre si mesmo. É ela que faz de nós seres especificamente humanos, racionais, críticos e eticamente comprometidos. Através dela discernimos os valores, efetuamos opções. Através dela o homem se expressa, toma consciência de si mesmo, se reconhece como projeto inacabado, põe em questão as suas próprias realizações, procura incansavelmente novas significações e cria obras que o transcendem.

 

O entendimento de Hannah Arendt (1989, p. 332), - de que cidadania é “o direito a ter direitos”, em que analisa que o a essência do homem já não pode ser compreendida em termos de história e natureza separadamente, em que assevera: “Esta nova situação, na qual a “humanidade” assumiu de fato um papel antes atribuído à natureza ou à história, significaria nesse contexto que o direito a ter direitos, ou o direito de cada indivíduo de pertencer à humanidade, deveria ser garantido pela própria humanidade. Nada nos assegura que isso seja possível.” - e o de Bobbio (1999, p. 1), - para quem “os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais”- , permitem-nos invocar o termo cidadania cultural, que se expressa nas palavras de Chauí (2006, p. 69) como “[...] a cultura como direito dos cidadãos, sem confundi-los com as figuras do consumidor e do contribuinte”, e, mais adiante, utilizando-se de fala proferida durante sua passagem pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, em janeiro de 1989, concebendo a cultura do ponto de vista da cidadania cultural:

 

[...] cultura como um direito do cidadão e, em particular, como direito à criação desse direito por todos aqueles que têm sido sistemática e deliberadamente excluídos do direito à cultura nesse país: os trabalhadores, tidos como incompetentes sociais, submetidos à condição de receptores de ideias, ordens, normas, valores e práticas cuja origem, cujo sentido e cuja finalidade lhes escapam. (CHAUÍ, 2006, p. 70.)

 

Ainda no discurso pela Secretaria, Chauí (2006, p. 70) expõe o que aquela instituição entenderia por direito à cultura:

 

O direito de produzir cultura, seja pela apropriação dos meios culturais existentes, seja pela invenção de novos significados culturais; o direito de participar das decisões quanto ao fazer cultural; o direito de usufruir os bens da cultura, criando locais e condições e acesso aos bens culturais para a população; o direito de estar informado sobre os serviços culturais e sobre a possibilidade deles participar ou usufruir; o direito à formação cultural e artística pública e gratuita nas Escolas e Oficinas de Cultura do Município; o direito à experimentação e à invenção do novo nas artes e nas humanidades; o direito a espaços para reflexão, debate e crítica; o direito à informação e à comunicação [...].

 

Propõe com clareza Cunha Filho (apud MENDONÇA, 2006, p. 73), ampliando nosso conceito de direitos culturais como:

 

[...] aqueles afetos às artes, à memória coletiva e ao repasse de saberes que asseguram a seus titulares o conhecimento e uso do passado, interferência ativa no presente e possibilidade de previsão e decisão de opções referentes ao futuro, visando sempre a dignidade da pessoa humana.

 

O fortalecimento deste direito ocorre em 15 de novembro de 1945, devido ao destaque em Preâmbulo da Constituição da UNESCO, que institui a “difusão da cultura como indispensável à dignidade do homem”. Aqui acolhemos o entendimento de José Afonso da Silva (2001, p. 182) de que, “no qualitativo ‘fundamentais’ acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive”.

Logo em seguida, temos sua inclusão na Carta das Nações Unidas, ratificada pelo Brasil em 21 de setembro de 1945, que previu, em seu Artigo 1º, item 3, a resolução de “problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário”.

Encontramos, ainda, no Artigo 22 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que toda pessoa pode legitimamente exigir a satisfação dos direitos culturais indispensáveis, e manifesto no Artigo 27 do mesmo documento que “toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural, da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de fruir de seus benefícios”. Surgem aqui os direitos culturais como direitos sociais do homem, formadores da dignidade da pessoa humana e do livre desenvolvimento de sua personalidade, conforme Silva (2001, p. 168).

Para reforçar a ideia de indispensabilidade da cultura, remetemo-nos à Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica, incorporada ao ordenamento brasileiro em 1992, cujo Preâmbulo dispõe:

 

[...] só pode ser realizado o ideal do ser humano livre, isento do temor e da miséria, se forem criadas condições que permitam a cada pessoa gozar dos seus direitos econômicos, sociais e culturais, bem como dos seus direitos civis e políticos.

 

E, no Artigo 16 do protocolo adicional ao referido Pacto, vemos a primazia da “previsão dos direitos aos benefícios da cultura”.

Apontamos os direitos culturais como direitos humanos de segunda geração levando em consideração a classificação de Bobbio (1999, p. 9) de direitos sociais atinentes à aludida categoria. Para Bonavides (2007, p. 565), os direitos de segunda geração protegem aquilo que proporciona os valores existenciais humanos plenamente, “o social”. Assevera Motta (2005, p. 68) que, nesta segunda geração, estão os direitos sociais, culturais e econômicos, e estes exigem do Estado uma postura mais ativa através de ações concretas desencadeadas para favorecer os indivíduos. Lembra, ainda, que são decorrentes dos direitos de primeira geração (quais sejam: vida, liberdade, igualdade, propriedade e segurança). Assim, no conjunto de deveres do Estado previstos pela Constituição brasileira, está o de proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à Ciência (art. 23, inciso V).

Baseamo-nos, também, no direito à autodeterminação dos povos, posto que, em virtude dele, os povos determinam livremente sua condição política e procuram, da mesma forma, seu desenvolvimento econômico, social e cultural. Diante disso, afirmamos que grupos sociais de diversas dimensões possuem expressões culturais próprias e que estas devem ser protegidas de interesses que desvirtuem sua integridade.

Convém apontar, nesse sentido, a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, aprovada na 33ª Conferência Geral da Unesco de 20 de outubro de 2005, que reconhece a importância dos conhecimentos tradicionais e da cultura para todos e, em especial, às pessoas pertencentes às minorias e aos povos autóctones (naturais de uma determinada região), cuja promoção deve ser feita de modo consciente e responsável, sob o princípio da dignidade e respeito a todas as culturas.

Para Mendonça (2006, p. 70), a cultura passa a figurar nos textos constitucionais brasileiros no ano de 1934. Todavia, salienta Milaré (2005, p. 400) que, àquela época, a Constituição limitava-se a declarar protegidos os bens de valor histórico, artístico, arqueológico e paisagístico, sem definir a abrangência desses conceitos. A Constituição Federal de 1988 reserva ao tema os arts. 215 e 216 do Título VIII, dedicado à Ordem Social, quando o conceito de patrimônio cultural brasileiro é ampliado ao incluir, além da materialidade dos bens culturais, outros de natureza imaterial.

O art. 215 assegura o exercício do direito à cultura e o acesso às fontes da cultura nacional, como apoio, proteção e difusão de manifestações culturais, inclusive criando formas de incentivo à disposição dos interessados na produção e conhecimento de bens e valores culturais, o que se faz através de políticas públicas e incentivos fiscais, dentre outros.

 

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

§ 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.

§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à:

I – defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;

II – produção, promoção e difusão de bens culturais;

III – formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões;

IV – democratização do acesso aos bens de cultura;

V – valorização da diversidade étnica e regional.

 

Encerramos o entendimento de cultura como direito humano diante da literalidade encontrada na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, em 2001, que expressa: “os Direitos Culturais são partes integrantes dos Direitos Humanos”. Logo, concluímos que tais direitos, como os demais direitos humanos, merecem proteção e aplicabilidade para que possam ser exercidos livre e efetivamente por todos, posto que constituem parte legítima da dignidade da pessoa humana e do exercício da cidadania.

O gozo da cidadania cultural (ou o não gozo), remete-nos à reflexão sobre os atuais cerceamentos em termos regulatórios e administrativos da cultura no país. Encarar a cultura como direito fundamental permite-nos ressignificar, então, nosso “direito a ter direitos”, em especial, tais direitos relativos às pessoas pertencentes às minorias e aos povos autóctones, sob o princípio da dignidade e respeito a todas as culturas.

 

 

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo – Antissemitismo, Imperialismo, Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1999.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

CHAUÍ, Marilena. Cidadania cultural – O direito à cultura. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002.

LAFFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

MENDONÇA, Gilson Martins. Meio ambiente cultural: aspectos jurídicos da salvaguarda ao patrimônio cultural brasileiro. 190 f. Dissertação (Mestrado em Direito). Programa de Pós-Graduação em Direito Econômico e Social, Centro de Ciências Jurídicas e Sociais. Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2006.

MILARÉ, Edis. Curso de Direito Ambiental brasileiro. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

MOTTA, Sylvio. Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Ímpetus, 2005.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2001



[1] Pesquisadora da Escola Superior da Advocacia de São Paulo – ESAOAB/SP. Pesquisadora em nível de Pós-doutorado no Instituto de Energia e Ambiente (IEE/USP). Pesquisadora do RCGI (Research Centre for Gás Innovation)/USP. Advogada, pós-graduada em Direito Público (UFG) mestre e doutora em Ciências Sociais (UFMA; UFPA), com estágio doutoral sanduíche na Universidade Paris XII, Villetaneuse (Sociologie/Droit).

 

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