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BASES NORMATIVAS DA PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL

11/05/2020 - Fonte: ESA/OABSP

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Bases normativas da proteção do patrimônio cultural imaterial

Raíssa Moreira L. M. Musarra[1]

Regina Célia Martinez[2]

Renata Miranda Lima[3]

O direito ao Meio Ambiente é constituído de bens de ordem física, biológica e socioeconômica, dentre eles figuram os bens vinculados à cultura e esta última é considerada pressuposto para o exercício da plena cidadania e direito fundamental social. O patrimônio cultural é composto de bens de natureza material e imaterial. Ao conjunto dos bens imateriais dá-se o nome de patrimônio cultural imaterial.

Assim, a definição de patrimônio cultural imaterial está expressa no artigo 2º da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, o primeiro “instrumento multilateral de caráter vinculante destinado a salvaguardar o patrimônio cultural imaterial,”, oriunda da 32ª sessão da Conferência Geral da UNESCO, de 17 de outubro de 2003, que opera-se nas seguintes palavras:

Entende-se por “patrimônio cultural imaterial” as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana.

 

De acordo com Mendonça (2006, p. 98)[4], já em 1961, a Unesco promovia ações com vistas à proteção do patrimônio cultural, com a Coleção de Música Tradicional do Mundo, vale mencionar a participação do projeto Arquivo Musical Timbira (advindo do patrimônio musical dos povos Timbira dos Estados do Maranhão e Tocantins). Reitera o autor a criação pela Unesco do Programa Tesouros Humanos Vivos em 1994. No Brasil, a Unesco auxilia a implantação do programa desde o ano de 2004.

Em 1998, é lançado pela Unesco o Programa da Proclamação das Obras Primas do Patrimônio Oral e Intangível da Humanidade que conta com bens brasileiros participantes, a exemplo da Arte Gráfica Kusiwa – Cosmologia e Linguagem Gráfica dos Wajãpi (povo indígena do Amapá, integrado em 2003) e o Samba de Roda do Recôncavo Baiano (integrado em 2005). Em 2001, o júri internacional para a Proclamação de Obras Primas recomenda à Unesco a criação de programa específico para a salvaguarda das línguas em perigo[5].

Outro documento fundamental para o reconhecimento do patrimônio cultural imaterial, é a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, de 2001, que inclui como proposta “elaborar políticas e estratégias de preservação e valorização do patrimônio cultural e natural, em particular do patrimônio oral e imaterial”. Destaque-se ainda a Convenção Sobre a Proteção da Diversidade das Expressões Culturais, ocorrida em 20 de outubro de 2005, em Paris.

As Obras Primas do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade incorporaram-se à lista representativa do patrimônio cultural imaterial da humanidade por força do artigo 31 da Convenção de 2003 (sobre o patrimônio cultural imaterial). O Congresso Nacional brasileiro aprovou o texto da referida convenção e sua vigência no Brasil é dada a partir de 1º de junho de 2006.

Salvaguardar na convenção significa: tomar medidas que visem garantir a viabilidade do patrimônio cultural imaterial, tais como a identificação, a documentação, a investigação, a preservação, a proteção, a promoção, a valorização, a transmissão – essencialmente por meio da educação formal e não-formal – e a revitalização deste patrimônio em seus diversos aspectos[6].

Para tanto, os Estados-partes têm como obrigações identificar e definir os elementos do patrimônio cultural imaterial presentes em seus territórios, adotando medidas de ordem jurídica, técnica, administrativa e financeira adequadas.

Algumas estratégias apontadas na convenção merecem destaque como a criação pelos Estados-partes de programas educativos de maneira especial aos jovens, além de programas de capacitação específicos no interior das comunidades e dos grupos envolvidos; atividades de fortalecimento de capacidades em matéria de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial e especialmente de gestão e pesquisas científicas, bem como a previsão da utilização de meios “não-formais” de transmissão do conhecimento; e a promoção da educação para a proteção dos espaços naturais e lugares de memória, cuja existência for indispensável para que o patrimônio cultural imaterial possa se expressar.

Pode-se contar com assistência internacional em que, dentre outras formas, inclui a capacitação de todo o pessoal necessário, elaboração de medidas normativas, criação e utilização de infra-estruturas e, quando cabível, a concessão de empréstimos com baixas taxas de juros e doações. Para viabilizar tal suporte, há o “Fundo para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial”.

Cabe lembrarmos a Declaração de Yamato, ocorrida em 2004, no Japão, também pela UNESCO e que traz a recomendação de que governos, instituições e especialistas substituam o enfoque da autenticidade como critério de seleção e salvaguarda do patrimônio imaterial pela noção referência cultural. Isso ocorre para bem demonstrar que o que se resguarda é o valor para os seres humanos e não os objetos em si formadores do patrimônio imaterial[7].

A nível federal, temos o Decreto-lei n. º 25 de 1937, que regula o patrimônio histórico e artístico nacional, porém, não teve o legislador à época desta norma, a sensibilidade de reservar procedimento específico para o tratamento do patrimônio cultural imaterial. Chama atenção o constante no § 1º deste artigo 1º, pois diz “Os bens a que se refere este artigo só serão considerados parte integrante do patrimônio histórico e artístico brasileiro, depois de inscritos separadamente ou agrupadamente num dos quatro Livros do Tombo, de que trata o artigo 4º desta lei”.  Vale lembrar os livros aos quais se refere são o Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, o Livro de Tombo Histórico, o Livro de Tombo das Belas Artes e Livro de Tombo das Artes Aplicadas.

Da análise tecida, concluímos que o legislador entendeu necessário comprovar interesse público, necessitando-se de atestados que corroborem a presença dos requisitos que identificam o bem como produto de manifestação da cultura brasileira. E, de acordo com o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), o registro é instrumento necessário para a aplicação dos planos de salvaguarda do patrimônio imaterial, sendo peça indispensável no levantamento das especificidades de cada bem, inclusive para suprir carências e irregularidades que por ventura viciem a manifestação cultural, bem como para desenvolver medidas alternativas ou sustentáveis frente a possíveis impactos ao meio ambiente natural[8][9].

Assim, considerando a legislação vigente com base nos dispositivos respectivos da Constituição Federal (arts. 1º,II, 23, I e III,24, VII, 30, IX, 215, 216 e 225), Decreto-lei no. 25, de 30 de novembro de 1937(organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional), o Decreto-lei no. 3866, de 29 de novembro de 1941(dispõe sobre o tombamento de bens no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), da lei 3924, de 26 de julho de 1961(dispõe sobre os monumentos arqueológicos e pré-históricos), Decreto no. 3551, de 04 de agosto de 2000(institui o registro de bens culturais de natureza imaterial), Lei 10257, de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade) e na realidade fática brasileira foi  publicada a Portaria n. 127, de 30 de abril de 2009[10].

A chancela da Paisagem Cultural estabelecida na portaria no. 127, é considerada como um dos principais avanços no campo da preservação do patrimônio cultural brasileiro dos últimos tempos na medida que, assinala e visa proteger a diversidade de relações que o ser humano estabeleceu com seu meio. Para outros estudiosos   consideram como significativo o avanço na legislação patrimonial, todavia,  salientam que a portaria por não ter força de lei não pode prever punições. Estimula a preservação indireta, mas não obriga, ou seja, não possui uma ação punitiva eficaz, muito embora outras leis possam lhe dar suporte[11], com resultado possuem apenas como efeito da descaracterização da paisagem chancelada  a perda do uso do certificado.

A Portaria do Iphan 127/2009 é importante referência normativa para o fortalecimento do processo de institucionalização e de uma ideia mais abrangente de patrimônio cultural no Brasil. No entanto (...) esta Portaria apresenta lacunas que podem comprometer a eficácia da chancela como instrumento protetivo e pode causar insegurança e questionamentos quanto à legitimidade deste processo[12].

            Cumpre destacar assim  que,   a portaria no. 127, de 30 de abril de 2009, estabelece a chancela da Paisagem Cultural Brasileira e a define no art. 1º como “uma porção peculiar do território nacional, representativa do processo de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiriam marcar ou atribuíram valores”, devendo ser declarada por chancela instituída pelo IPHAN mediante procedimento específico.

A finalidade básica de tal chancela está adstrita  a atender ao interesse público e contribuir para a preservação do patrimônio cultural, complementando e integrando os instrumentos de promoção e proteção existentes, nos termos preconizados na Constituição Federal(art. 2º.da portaria)

O art. 3º destaca a sensibilidade do legislador, na medida que, considera o caráter dinâmico da cultura e da ação humana sobre as porções do território a que se aplica, convive com as transformações inerentes ao desenvolvimento econômico e social sustentáveis e valoriza a motivação responsável pela preservação do patrimônio.

O estabelecimento do referido pacto pode implicar no envolvimento conjunto  do poder público, sociedade civil e iniciativa privada, podendo ser inclusive integrado no Plano de Gestão a ser acordado entre as diversas entidades, órgãos e agentes públicos e privados envolvidos, devendo ser todo o processo acompanhado pelo IPHAN.

Desta forma, qualquer pessoa natural ou jurídica é parte legítima para requerer a instauração do processo administrativo visando a chancela de Paisagem Cultural Brasileira, através de requerimento acompanhado da documentação pertinente que poderá ser dirigido:

  1. às Superintendências Regionais do IPHAN, em cuja circunscrição o bem se  situar;
  2. ao Presidente do IPHAN; ou
  3. ao Ministro de Estado da Cultura.

              Uma vez verificada a pertinência do requerimento será instaurado processo administrativo. (art. 8º) O Departamento do Patrimônio Material e Fiscalização é o órgão responsável pela instauração, coordenação, instrução e análise do processo administrativo(podendo ser consultados os diversos setores internos do IPHAN que detenham atribuições na área as entidades, órgãos e agendes públicos e privados envolvidos, com vistas à celebração de um pacto para a gestão da Paisagem Cultural Brasileira a ser chancelada. (art. 9º)

            Finalizada a instrução, o processo administrativo será submetido para análise jurídica e expedição de edital de notificação da chancela, com publicação no Diário Oficial da União e abertura do prazo de 30 dias para manifestações ou eventuais contestações julgadas pelo Departamento do Patrimônio Material e Fiscalização – DEPAM/IPHAN, no prazo de 30(trinta) dias, mediante prévia oitiva da Procuradoria Federal, remetendo-se o processo administrativo para deliberação ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural. (arts. 10 e 11) (grifo nosso)

            Uma vez aprovada a chancela da Paisagem Cultural Brasileira pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural a súmula da decisão será publicada no Diário Oficial da União, sendo o processo administrativo remetido pelo Presidente do IPHAN para homologação final do Ministro da Cultura. (art. 12) ( grifo nosso) Haverá também a comunicação da aprovação da chancela aos Estados-membros e Municípios onde a porção territorial estiver localizada, dando-se ciência ao Ministério Público Federal e Estadual, com ampla publicidade do ato por meio da divulgação nos meios de comunicação pertinentes.(art. 13) (grifo nosso).

            O legislador  prevê o acompanhamento da Paisagem Cultural Chancelada com a elaboração de relatórios de monitoramento das ações previstas e de avaliação periódica das qualidades atribuídas ao bem, devendo ser revalidada no prazo máximo de 10 anos em processo próprio formalizado e instruído a partir dos relatórios de monitoramento e de avaliação, combinando com manifestações das instâncias regional e local, para deliberação pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural. A referida decisão do Conselho (perda ou manutenção da chancela) será publicada no Diário Oficial da União, com ampla divulgação ao ato nos meios de comunicação pertinentes.  

Em relação à configuração posta na Constituição Federal de 1988, há no artigo 216, referência ao patrimônio imaterial como formador do patrimônio cultural brasileiro, considerado em relação aos bens tomados individual ou conjuntamente, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos sociais brasileiros. Em relação aos bens imateriais, estão incluídas as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações artísticas, científicas e tecnológicas, ao lado de outros de natureza material, que, conjuntamente, como já dito, compõem o patrimônio cultural brasileiro.

Merece destaque o §3º do mesmo artigo (216) quanto à previsão de lei que estabeleça incentivos para a produção e conhecimento de bens e valores culturais, e aqui incluímos a lei de número 8.313 de 1991 (Programa Nacional de Apoio a Cultura – PRONAC, também conhecida como Lei Rouanet), tendo em seu artigo 1º, inciso VI, a finalidade de “preservar os bens materiais e imateriais do patrimônio cultural e histórico brasileiro”. A implementação se dá através do Fundo Nacional da Cultura (FNC), dos Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficart) e do incentivo a projetos culturais.

Aprofundando reflexões quanto às mudanças ocorridas no governo Bolsonaro destaca-se que em 2019 ocorreu a extinção do Ministério da Cultura o qual passou a ser a Secretaria Especial da Cultura subordinada à pasta da Cidadania coordenada pelo médico Osmar Terra. Contudo, em novembro, a secretaria da cultura, passou a integrar a pasta do turismo.[13][14] Assim, hoje a atribuição está relegada a uma Secretaria dentro do Ministério, implicando em desconexões dentro do Sistema Federal de Cultura em termos de participação de atores sem histórico de acompanhamento de matéria cultural em espaços destinados à tomada de decisão com consequências para todo a proteção e manutenção do patrimônio cultural.

Destaca-se que o Sistema Federal de Cultura (SFC), é regulado pelo decreto nº. 5.520 de 2005 que teve o seu capítulo II revogado pelo decreto 9891/2019, mantendo-se os dispositivos do capítulo I do decreto 5.520 que  dispõe sobre a finalidade do SFC a qual é integrar os órgãos, programas e ações culturais do Governo Federal; contribuir para a implementação de políticas culturais democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da federação e sociedade civil; articular ações com vistas a estabelecer e efetivar, no âmbito federal, o Plano Nacional de Cultura; e promover iniciativas para apoiar o desenvolvimento social com pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional (BRASIL, Decreto nº 5.520/2005).

O artigo 2º do decreto supramencionado estabelece os integrantes da SFC[15] e o artigo 4º estabelece que dentre os objetivos que a compõe está o de incentivar parcerias no âmbito do setor público e com o setor privado, na área de gestão e promoção da cultura; reunir, consolidar e disseminar dados dos órgãos e entidades dele integrantes; promover a transparência dos investimentos na área cultural; incentivar, integrar e coordenar a formação de redes e sistemas setoriais nas diversas áreas do fazer cultural; estimular a implantação dos Sistemas Estaduais e Municipais de Cultura; promover a integração da cultura brasileira e das políticas públicas de cultura do Brasil, no âmbito da comunidade internacional, especialmente das comunidades latino-americanas e países de língua portuguesa; e promover a cultura em toda a sua amplitude, encontrando os meios para realizar o encontro dos conhecimentos e técnicas criativos, concorrendo para a valorização das atividades e profissões culturais e artísticas, e fomentando a cultura crítica e a liberdade de criação e expressão como elementos indissociáveis do desenvolvimento cultural brasileiro e universal (BRASIL, Decreto nº 5.520/2005).

Dentre outras atribuições do suprimido Ministério da Cultura e dos atuais e/ou futuros responsáveis pela pasta, está a de sistematizar e promover, com apoio dos segmentos pertinentes no âmbito da administração pública federal, a compatibilização e interação de normas, procedimentos técnicos e sistemas de gestão relativos à preservação e disseminação do patrimônio material e imaterial sob a guarda da União (BRASIL, Decreto nº 5.520/2005, artigo 3º, inciso V).

Segundo estudo encomendado pelo finado Ministério da Cultura (MinC) à Fundação Getulio Vargas (FGV) e divulgado no final do ano passado informou que, desde 1993, projetos financiados pela Lei Rouanet injetaram R$ 49,78 bilhões na economia. Para cada R$ 1 investido por patrocinadores em 53.368 projetos culturais via Lei de Incentivo, R$ 1,59 retornou para a sociedade. A economia criativa é responsável por 2,64% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro (BRASIL, 2018).

Assim, considera-se que o investimento na cultura, para além de representar fomento e proteção ao patrimônio cultural no Brasil, gera empregos e ganhos à economia. E, em especial aos bens culturais imateriais, sua promoção e proteção, historicamente lenta e gradual, tende a sentir os reflexos do desaparelhamento enfrentado no Sistema Federal de Cultura.

Inclui-se a nível federal, além do citado, o Decreto N.º 6.226, de 04 de outubro 2007, que que visa em seu artigo 2o o fortalecimento de experiências culturais desenvolvidas por agentes e movimentos sócio-culturais de incorporação de populações excluídas e vulneráveis e o fortalecimento dos saberes, dos fazeres, dos cultivos e dos modos de vida de populações tradicionais.

De volta ao conteúdo do artigo 216 da Constituição Federal, por ele se verá o proposto em seu parágrafo 4º, quando da punição de danos e ameaças ao patrimônio cultural. Quando a isso, temos a previsão de tipos penais específicos contra o patrimônio cultural, descritos nos artigos 62 a 65 da Lei 9605 de 1998 (Lei de Crimes Ambientais), além da tutela pelo Direito Ambiental na repressão e reparação de danos ou ameaças aos bens componentes do Meio Ambiente Cultural. Ao patrimônio imaterial, imagina-se que estes institutos possam ser utilizados para a proteção dos espaços naturais e lugares de memória, cuja existência for indispensável para que aquele possa ter expressão.

Em sede de conclusão deste resgate normativo, destaca-se o artigo 23 da Constituição Federal declara ser de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a proteção de bens de valor histórico, artístico e cultural e proporcionar os meios de acesso à cultura. Lembramos também que o artigo 24 da Lei Maior estabelece competência legislativa concorrente entre União, Estados e Distrito Federal sobre proteção ao patrimônio histórico, cultural e artístico, e a responsabilidade por dano ao meio ambiente, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

Último parágrafo de destaque será o §6º, ainda do artigo 216 da C.F., que fora incluído pela Emenda Constitucional nº.42 de 2003, e faculta aos Estados e ao Distrito Federal vincular a fundo estadual de fomento à cultura até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida para o financiamento de programas e projetos culturais. Ademais disso, há tramitando no Congresso Nacional Brasileiro, Proposta de Emenda à Constituição de nº. 150 do ano de 2003, buscando acrescentar o art. 216-A à Constituição Federal, para destinação de recursos à cultura. Não de outro modo, diante decorrência lógica dos acontecimentos, a tendência é a de que esta “faculdade” dada aos estados seja encarada como não prioritária, especialmente em tempos de pandemia, e que a proposta continue sem conversão.

Há que ser citada, ainda que controversamente, a Lei nº 13.364 de 2016, que reconhece o rodeio, a vaquejada e o laço, bem como as respectivas expressões artísticas e esportivas, como manifestações culturais nacionais, eleva essas atividades à condição de bens de natureza imaterial integrantes do patrimônio cultural brasileiro e dispõe sobre as modalidades esportivas equestres tradicionais e sobre a proteção ao bem-estar animal.  Esta, foi alterada pela Lei nº 13.873 de 2019, para regulamentar a prática de laço do rodeio laço, bem como as respectivas expressões artísticas e esportivas, como manifestação cultural nacional, elevar essas atividades à condição de bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro e dispor sobre as modalidades esportivas equestres tradicionais e sobre a proteção ao bem-estar animal[16]. Saliente-se que estes dispositivos não alcançaram a devida discussão legislativa, e a oposição a eles não logrou êxito diante de argumentos de “movimentação da economia”[17].

Vê-se, que a narrativa normativa em nível federal reservada à proteção do patrimônio cultural imaterial ainda necessita de fortalecimento e amadurecimento. Um país como o Brasil, com diversidade cultural capaz de ter inseridos com reconhecimento e valorização bens culturais como suas práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas de suas comunidades ou grupos, ainda tem fragilidades ao lidar com a governança de seus instrumentos. Correndo o risco, assim, de descumprir o compromisso constitucional e ético com seu sentimento de identidade e de continuidade e, de maneira mais ampla, com a diversidade cultural e a criatividade humana.



[1] Raíssa Moreira L. M. Musarra. Advogada, Pesquisadora da Escola Superior da Advocacia de São Paulo – ESAOAB/SP. Pesquisadora em nível de Pós-doutorado no Instituto de Energia e Ambiente (IEE/USP). Pesquisadora do RCGI (Research Centre for Gás Innovation)/USP. Advogada, pós-graduada em Direito Público (UFG) mestre e doutora em Ciências Sociais (UFMA; UFPA), com estágio doutoral sanduíche na Universidade Paris XII, Villetaneuse (Sociologie/Droit).

[2] Advogada. Pesquisadora da Escola Superior da Advocacia de São Paulo – ESAOAB/SP. Doutora. Mediadora, Conciliadora e Árbitra. Professora da Escola Paulista da Magistratura de São Paulo(EPM). Professora UNIJALES – Centro Universitário de Jales. Vice Presidente da Associação Paulista de Conservadores e Restauradores de Bens Culturais. Membro efetivo da Comissão de Ensino Juridico da OAB/SP. Consultora Especialista do Conselho Estadual de Educação – São Paulo. Integrante do Banco de Avaliadores do Sistema Nacional de Avaliação de Educação Superior – BASIS.

[3] Pesquisadora da Escola Superior da Advocacia ESA/OAB-SP (2020). Mestre pela Universidade Nove de Julho em Direito (2018-2020). Coordenadora Adjunta do Núcleo de bolsas e desenvolvimento Acadêmico do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM (2019-2020). Coordenadora Adjunta do Grupo de ações indiscriminatórias do Grupo Prerrogativas (2019-2020). Atuante em ações Adovocacy pelo curso AdvocacyHub. Pós-Graduada pela Universidade Castilla La Mancha - UCLM em negociação, conciliação e mediação em resolução de conflitos (2018). Pós-Graduada pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM em parceria com o Instituto Ius Gentium Conimbrigae (IGC) Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em Direitos Fundamentais Internacionais (2017). Graduada em Direito pela Universidade Nove de Julho - UNINOVE (2016).

[4] MENDONÇA, Gilson Martins. Meio ambiente cultural: aspectos jurídicos da salvaguarda ao patrimônio cultural brasileiro. 190 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito Econômico e Social, Centro de Ciências Jurídicas e Sociais, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2006.

[5] MENDONÇA, Gilson Martins. Meio ambiente cultural: aspectos jurídicos da salvaguarda ao patrimônio cultural brasileiro. 190 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito Econômico e Social, Centro de Ciências Jurídicas e Sociais, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2006.

[6] MILARÉ, Edis. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

[7] CABRAL, Fabrícia Guimarães Sobral. Saberes sobrepostos: design e artesanato na

produção de objetos culturais. Rio de Janeiro, 2007.

[8] MENDES, Raíssa M. L. Análise da Tutela do Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro: Um Estudo das Tradicionais Técnicas de Construção Naval Maranhense com foco no Estaleiro Escola do Maranhão. Monografia não publicada, 2007.

[9] Temos, como bens culturais imateriais salvaguardados, em seus respectivos instrumentos de proteção, os seguintes:

Livro de Registro de Saberes:

Modo artesanal de fazer queijo de Minas, nas regiões do Serro e das Serras da Canastra e do Salitre; Modo de fazer cuias do Baixo Amazonas; Modo de fazer viola de cocho; Modo de fazer renda irlandesa — Sergipe; Ofício das baianas de acarajé; Ofício dos mestres de capoeira; Ofício de sineiro; Produção tradicional e práticas socioculturais associadas à cajuína no Piauí; Saberes e práticas associados aos modos de fazer bonecas carajá; Sistema agrícola tradicional do Rio Negro.

Livro de Registro de Celebrações:

Círio de Nossa Senhora de Nazaré; Complexo Cultural do Bumba-Meu-Boi do Maranhão; Festa do Divino Espírito Santo de Paraty; Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis; Festa de Sant’Ana de Caicó; Festa do Senhor Bom Jesus do Bonfim; Festividades do Glorioso São Sebastião na região do Marajó; Ritual yaokwa do povo indígena enawenê-nawê.

Livro de Registro de Formas de Expressão:

Carimbó; Arte Kusiwa — pintura corporal e arte gráfica wajãpi Cavalo-marinho; Fandango caiçara; Frevo; Jongo no Sudeste; Maracatu-Nação; Maracatu de baque solto; Matrizes do samba no Rio de Janeiro: partido alto, samba de terreiro e samba-enredo; O toque dos sinos em Minas Gerais; Roda de capoeira; Rtixòkò: expressão artística e cosmológica do povo carajá; Samba de roda do Recôncavo Baiano; Tambor de crioula do Maranhão; Teatro de bonecos popular do Nordeste.

Livro de Registro de Lugares:

Cachoeira de Iauaretê — lugar sagrado dos povos indígenas dos Rios Uaupés e Papuri; Feira de Caruaru; Tava — lugar de referência para o povo guarani.

[10] MARTINEZ. Regina Célia. Tese de Doutorado. Defesa do Patrimônio Histórico Nacional: Identidade e Cidadania. Pontifícia Universidade Católica. São Paulo.  1998.

[11] A lei 9605/1998(Lei dos crimes ambientais), por exemplo em seus artigos 62 e 63 pune a destruição,inutilização ou deterioração bem como, a alteração do aspecto ou estrutura de edificação ou local especialmente protegido por lei.

Art. 62. Destruir, inutilizar ou deteriorar: I - bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial; II - arquivo, registro, museu, biblioteca, pinacoteca, instalação científica ou similar protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial: Pena - reclusão, de um a três anos, e multa. Parágrafo único. Se o crime for culposo, a pena é de seis meses a um ano de detenção, sem prejuízo da multa. (BRASIL, 1998). Art. 63. Alterar o aspecto ou estrutura de edificação ou local especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial, em razão de seu valor paisagístico, ecológico, turístico, artístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental, sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a concedida: Pena - reclusão, de um a três anos, e multa. (BRASIL, 1998).

[12] CAPUTE, Bernado N.; PEREIRA, Helena D. L. Paisagem cultural e legislação brasileira. In: COLÓQUIO IBEROAMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO - DESAFIOS E PERSPECTIVAS, 1., 2010, Belo Horizonte, MG. Anais...Belo Horizonte: Escola de Arquitetura da UFMG, 2010. p. 1-14.

 

[13] MOLINERO, Bruno. Folha de São Paulo. Cultura, sob Bolsonaro, vive volta da censura, perda de ministério e viés evangélico. 29/12/2019.  Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/12/cultura-sob-bolsonaro-vive-volta-da-censura-perda-de-ministerio-e-vies-evangelico.shtml>. Acesso em 05/05/2020.

[14] Outra medida adotada no governo Bolsonaro foi a redução de patrocínio de empresas estatais à cultura como Banco do Brasil, Caixa Econômica, Correios e Petrobras, bem como a modificação da Lei Rouanet diminuindo os subsídios públicos à produtores de 60 milhões para 1 milhão (BRASIL, Instrução Normativa nº 2/2019).

Segundo Sérgio Sá Leitão, secretário da Cultura do Estado de São Paulo e ex-ministro da Cultura do governo Michel Temer, estas mudanças trazem implicações especialmente na cidade de São Paulo que é o terceiro maior mercado de musicais no mundo, atrás de Nova York e de Londres. O Secretário aponta que “os musicais movimentam uma cadeia produtiva que inclui 68 segmentos da economia”, gerando emprego e renda para milhares de pessoas. Como forma de ilustrar o exposto, tem-se que um musical de médio porte contrata cerca de 100 trabalhadores enquanto grandes produções chegam a contratar mais de 200 pessoas (GABRIEL, 2019).

Dado o exposto, estima-se que “a redução do teto para R$ 1 milhão inviabilizaria aproximadamente 32% dos projetos” na área do teatro e inviabilizaria a captação de 63% dos musicais, “o que representaria 129 projetos a menos e aproximadamente 20 mil novos desempregos”(GABRIEL, 2019).

[15] Art. 2º Integram o SFC:

I - Ministério da Cultura e os seus entes vinculados, a seguir indicados:

a) Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN;

b) Agência Nacional de Cinema - ANCINE;

c) Fundação Biblioteca Nacional - BN;

d) Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB;

e) Fundação Nacional de Artes - FUNARTE; e

f) Fundação Cultural Palmares - FCP;

II - Conselho Nacional de Política Cultural - CNPC; e

III - Comissão Nacional de Incentivo a Cultura - CNIC.

e) Fundação Nacional de Artes - FUNARTE; 

f) Fundação Cultural Palmares - FCP; e 

g) Instituto Brasileiro de Museus - IBRAM; 

Parágrafo único. Outros órgãos poderão integrar o SFC, conforme dispuser ato do Ministro de Estado da Cultura.

[16] A Lei dispõe, em seu art. 3º-B:  Serão aprovados regulamentos específicos para o rodeio, a vaquejada, o laço e as modalidades esportivas equestres por suas respectivas associações ou entidades legais reconhecidas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. (Incluído pela Lei nº 13.873, de 2019) § 1º  Os regulamentos referidos no caput deste artigo devem estabelecer regras que assegurem a proteção ao bem-estar animal e prever sanções para os casos de descumprimento.            (Incluído pela Lei nº 13.873, de 2019) § 2º  Sem prejuízo das demais disposições que garantam o bem-estar animal, deve-se, em relação à vaquejada: (Incluído pela Lei nº 13.873, de 2019)

I - assegurar aos animais água, alimentação e local apropriado para descanso; (Incluído pela Lei nº 13.873, de 2019)

II - prevenir ferimentos e doenças por meio de instalações, ferramentas e utensílios adequados e da prestação de assistência médico-veterinária; (Incluído pela Lei nº 13.873, de 2019)

III - utilizar protetor de cauda nos bovinos; (Incluído pela Lei nº 13.873, de 2019)

IV - garantir quantidade suficiente de areia lavada na faixa onde ocorre a pontuação, respeitada a profundidade mínima de 40 cm (quarenta centímetros).

[17] BRASIL, Senado Notícias. Sancionada lei que considera vaquejada patrimônio cultural do Brasil. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/11/30/sancionada-lei-que-considera-vaquejada-patrimonio-cultural-do-brasil. Acesso em 05 de maio de 2020.

 

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