Artigo
SÚMULA 606/STF
17/04/2020
- Fonte:
ESA/OABSP
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SÚMULA 606/STF
Alexandre Langaro*
1. Diz a Súmula 606/STF:
Não cabe habeas corpus originário para o Tribunal Pleno de decisão de Turma, ou do Plenário, proferida em habeas corpus ou no respectivo recurso.
2. Discorda-se — sempre se discordou e se sustentou [e se sustenta] o oposto! — do enunciado desse verbete.
3. Esclarece-se.
4. Há diversos motivos.
5. O rol dos direitos fundamentais e das garantias processuais da Constituição Federal [CF] estabelece o seguinte:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[…]
LXVIII – conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.
6. A Súmula 606/STF, ao presumir a exceção — infringindo a ordem natural das coisas e, por conseguinte, o postulado da razoabilidade — viola brutalmente o art. 5º, LXVIII, CF, que, por óbvio, não proíbe a impetração do habeas corpus perante o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal [STF]. De modo a se fazer pertinente o recurso ao brocardo segundo o qual:
Onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir[1].
7. Além disso, não há como inserir, no art. 5º, LXVIII, CF, via interpretação redutora de direitos fundamentais e garantias instrumentais, palavras nele não contidas, especialmente, claro, quando se o faz — tal e como acontece na hipótese ora estudada — para, mediante a presunção do extravagante[2], excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Na CF:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[…]
XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
§ 4º O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.
8. No Direito Internacional dos Direitos Humanos:
Art. XXX
Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos[3].
ARTIGO 18°
Limitação da aplicação de restrições aos direitos As restrições feitas nos termos da presente Convenção aos referidos direitos e liberdades só podem ser aplicadas para os fins que foram previstas[4].
ARTIGO 5
1. Nenhuma disposição do presente Pacto poderá ser interpretada no sentido de reconhecer a um Estado, grupo ou indivíduo qualquer direito de dedicar-se a quaisquer atividades ou praticar quaisquer atos que tenham por objetivo destruir os direitos ou liberdades reconhecidos no presente Pacto ou impor-lhe limitações mais amplas do que aquelas nele previstas.
2. Não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado Parte do presente Pacto em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau[5].
ARTIGO 29
Normas de Interpretação
Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido de:
a) permitir a qualquer dos Estados-Partes, grupo ou pessoa, suprimir o gozo e exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista;
b) limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados-Partes ou de acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos Estados;
c) excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo; e
d) excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza[6].
9. Na lei:
Art. 3º A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito[7].
Art. 1º O processo civil [e especialmente o processo penal![8]] será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código.
[…]
Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito[9].
10. A isso se soma — e esse ponto é de importância fundamental — o teor do art. 6º do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal[10]:
Art. 6º Também compete ao Plenário:
[…]
a) o habeas corpus, quando for coator ou paciente o Presidente da República, a Câmara, o Senado, o próprio Tribunal ou qualquer de seus Ministros, o Conselho Nacional da Magistratura, o Procurador-Geral da República, ou quando a coação provier do Tribunal Superior Eleitoral, ou, nos casos do art. 129, § 2º, da Constituição, do Superior Tribunal Militar, bem assim quando se relacionar com extradição requisitada por Estado estrangeiro.
11. O ‘compete’ a que se refere o art. 6º, RI/STF, quer dizer cabe. Logo, ‘Também cabe ao Plenário’. O Regimento Interno do Supremo é ‘a lei do supremo’. ‘Lei’ do Supremo — insista-se — que se harmoniza com a Constituição Federal, com o Direito Internacional dos Direitos Humanos e com as leis processuais brasileiras.
12. Merece destaque também o fato de que a Súmula 606/STF data de 31/10/1984.
13. O Tribunal Pleno do Supremo, todavia, não aplicou — e esse talvez possa ter sido um primeiro passo — a Súmula 606/STF no HC 152752/PR [o caso do ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva[11]]:
HABEAS CORPUS. MATÉRIA CRIMINAL. EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA. IMPETRAÇÃO EM SUBSTITUIÇÃO A RECURSO ORDINÁRIO CONSTITUCIONAL. COGNOSCIBILIDADE. ATO REPUTADO COATOR COMPATÍVEL COM A JURISPRUDÊNCIA DO STF. ILEGALIDADE OU ABUSO DE PODER. INOCORRÊNCIA. ALEGADO CARÁTER NÃO VINCULANTE DOS PRECEDENTES DESTA CORTE. IRRELEVÂNCIA. DEFLAGRAÇÃO DA ETAPA EXECUTIVA. FUNDAMENTAÇÃO ESPECÍFICA. DESNECESSIDADE. PEDIDO EXPRESSO DA ACUSAÇÃO. DISPENSABILIDADE. PLAUSIBILIDADE DE TESES VEICULADAS EM FUTURO RECURSO EXCEPCIONAL. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. ORDEM DENEGADA.
1. Por maioria de votos, o Tribunal Pleno assentou que é admissível, no âmbito desta Suprema Corte, impetração originária substitutiva de recurso ordinário constitucional.
2. O habeas corpus destina-se, por expressa injunção constitucional (art. 5°, LXVIII), à tutela da liberdade de locomoção, desde que objeto de ameaça concreta, ou efetiva coação, fruto de ilegalidade ou abuso de poder.
3. Não se qualifica como ilegal ou abusivo o ato cujo conteúdo é compatível com a compreensão do Supremo Tribunal Federal, sobretudo quando se trata de jurisprudência dominante ao tempo em que proferida a decisão impugnada.
4. Independentemente do caráter vinculante ou não dos precedentes, emanados desta Suprema Corte, que admitem a execução provisória da pena, não configura constrangimento ilegal a decisão que se alinha a esse posicionamento, forte no necessário comprometimento do Estado-Juiz, decorrente de um sistema de precedentes, voltado a conferir cognoscibilidade, estabilidade e uniformidade à jurisprudência.
5. O implemento da execução provisória da pena atua como desdobramento natural da perfectibilização da condenação sedimentada na seara das instâncias ordinárias e do cabimento, em tese, tão somente de recursos despidos de automática eficácia suspensiva, sendo que, assim como ocorre na deflagração da execução definitiva, não se exige motivação particularizada ou de índole cautelar.
6. A execução penal é regida por critérios de oficialidade (art. 195, Lei n. 7.210/84), de modo que sua inauguração não desafia pedido expresso da acusação.
7. Não configura reforma prejudicial a determinação de início do cumprimento da pena, mesmo se existente comando sentencial anterior que assegure ao acusado, genericamente, o direito de recorrer em liberdade.
8. Descabe ao Supremo Tribunal Federal, para fins de excepcional suspensão dos efeitos de condenação assentada em segundo grau, avaliar, antes do exame pelos órgãos jurisdicionais antecedentes, a plausibilidade das teses arguidas em sede de recursos excepcionais.
9. Ordem denegada.
14. Os fundamentos ora invocados decerto justificam — por si e autonomamente — o imediato cancelamento da Súmula 606/STF.
Alexandre Langaro, advogado criminal. Autor de livros e artigos jurídicos. Estudou o NY Criminal Procedure Law em Nova York
[1][Ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus].
[2][Código de Processo Penal
Art. 3º A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.
Código de Processo Civil
Art. 375. O juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e, ainda, as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a estas, o exame pericial.
STF
PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE.
O princípio da razoabilidade é conducente a presumir-se o que ocorre no dia-a-dia e não o extravagante. [RE 199066 ED/PR].
[3][Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948].
[4][Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 1953].
[5][Decreto 592, que promulga o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, 1966].
[6][Decreto 678, que promulga Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), 1969].
[7][Código de Processo Penal — CPP].
[8][Nota de Alexandre Langaro].
[9][Código de Processo Civil — CPC].
[11][Se a Súmula 606/STF não se aplicou ao caso do ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, então não pode ser aplicada em nenhum outro].