Artigo
DIREITO DE PERMANECER CALADO
13/04/2020
- Fonte:
ESA/OABSP
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DIREITO DE PERMANECER CALADO
REVOGAÇÃO, POR INCOMPATIBILIDADE, DA SEGUNDA PARTE DO ART. 198, CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
NÃO RECEPÇÃO, PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL [CF], DA SEGUNDA PARTE DO ART. 198, CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Alexandre Langaro
1. O art. 198, CPP, dispõe o seguinte:
Art.198. O silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz.
2. A segunda parte do artigo ora analisado, com a redação original do CPP/1941, ao assentar que ‘o silêncio […] poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz‘, penaliza’, a mais não poder, o investigado — e de maneira aberrante, claro — que opta por exercer o direito humano fundamental de permanecer calado.
3. Acontece que, de acordo com as normas constitucionais e com o Direito Internacional dos Direitos Humanos, assiste, contudo, a pessoa natural — o ser humano de carne e osso —, acusada de ter cometido uma infração penal, o direito, inato, natural e inalienável — fundamento maior da liberdade e da justiça — de permanecer em silêncio e, sobretudo e consequentemente, o de não comparecer perante a autoridade policial[1], tampouco perante a autoridade judicial[2]:
Assim, a ausência aos atos do inquérito e do processo — como estratégia defensiva —, é uma das ferramentas fundamentais para atingir esse objetivo. E não há necessidade de o juiz autorizar ou dispensar o comparecimento
do denunciado. Já que é a lei quem expressamente o faz — art. 367 do CPP 1. É do advogado, e não do juiz 2, a responsabilidade pelo estabelecimento –– e pela adequada estruturação — da estratégia da defesa penal[3].
4. A Constituição Federal estabelece a dignidade da pessoa humana[4] como fundamento — atributo, decerto, impregnado do mais absoluto e irreversível grau de essencialidade — do Estado Democrático de Direito; ademais disso, inclui, como uma das balizas reveladoras dos postulados do devido processo legal dialético e democrático, da inocência[5] e da amplitude do direito de defesa, com os meios e recursos a ela inerentes[6], o direito, excelso e imprescritível, insista-se, que assiste a todos os investigados — TODOS —, de silenciar perante as autoridades policial e judicial. Desse direito deriva, necessariamente, considerado, no ponto, o princípio lógico da não-contradição, o direito que toca à pessoa natural, investigada, de, estrategicamente, não comparecer perante as autoridades antes mencionadas. Nesse sentido, inclusive, o art. 367, CPP, incidindo, também, no ponto, o art. 2º, I, a Lei de Introdução às Normas de Introdução do Direito Brasileiro. Assim:
Art. 367. O processo seguirá sem a presença do acusado que, citado ou intimado pessoalmente para qualquer ato, deixar de comparecer sem motivo justificado, ou, no caso de mudança de residência, não comunicar o novo endereço ao juízo. [CPP]
Art. 2o Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
§ 1o A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. [LINDB]
5. Isso significa que:
Dessa ausência não decorre — é importantíssimo dizer —, nenhuma consequência jurídico-penal negativa para o réu [o processo seguirá sem a presença do denunciado e só]. Mas poderão ocorrer consequências positivas. À medida que se evitam constrangimentos e abalos psíquicos desnecessários — independentemente da existência ou não de responsabilidade penal [isso é outra coisa].
Ainda se escuta hoje — tanto no cotidiano penal como no cinema— que o investigado somente falará em juízo. O penalista, contudo, pode ressalvar — se entender oportuno e conveniente ––, que o seu cliente não comparecerá nem mesmo perante o juízo da causa penal; prejudicada, natural e logicamente, por isso, a suposta fala. O advogado criminal, ao se manifestar juridicamente nesse sentido cumpre decerto, com absoluto rigor técnico e ética apurada, a Constituição Federal e a lei[7].
6. É patente que quem exercita um direito humano fundamental não pode ser penalizado. De igual modo, não se reduzem — nem se restringem e ou se suspendem —, direitos humanos pela via interpretativa. Nesse sentido:
Art. XXX
Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos[8].
ARTIGO 18°
Limitação da aplicação de restrições aos direitos As restrições feitas nos termos da presente Convenção aos referidos direitos e liberdades só podem ser aplicadas para os fins que foram previstas[9].
ARTIGO 5
1. Nenhuma disposição do presente Pacto poderá ser interpretada no sentido de reconhecer a um Estado, grupo ou indivíduo qualquer direito de dedicar-se a quaisquer atividades ou praticar quaisquer atos que tenham por objetivo destruir os direitos ou liberdades reconhecidos no presente Pacto ou impor-lhe limitações mais amplas do que aquelas nele previstas.
2. Não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado Parte do presente Pacto em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau[10].
ARTIGO 29
Normas de Interpretação
Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido de:
a) permitir a qualquer dos Estados-Partes, grupo ou pessoa, suprimir o gozo e exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista;
b) limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados-Partes ou de acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos Estados;
c) excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo; e
d) excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza[11].
7. Nesse sentido, então, toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, a garantia de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada[12]. É dizer, toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa — e é importantíssimo insistir nesse ponto fundamental — tem direito, em plena igualdade, a garantia mínima de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada[13].
8. Remanesce, assim, apenas a primeira parte do preceito inscrito no art. 198, CPP:
Art. 198. O silêncio do acusado não importará confissão.
9. Toda e qualquer leitura do art. 198, CPP, diversa da ora realizada, portanto, não violará apenas a Constituição Federal, mas também, e igualmente, o Direito Internacional dos Direitos Humanos.
10. Passou da hora de se compreender que o Direito Penal — e também o Direito Processual Penal — se constitui de duas partes:
— uma delas, rígida, inflexível e imodificável, integrado por cláusulas pétreas, decorrentes do Direito Constitucional e do Direito Internacional dos Direitos Humanos[14];
— a outra, maleável, flexível e, portanto, modificável, formada, ou incorporada, pelas leis ordinárias e ou complementares. Assim:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
§ 4º O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I — direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho.
Parágrafo único. Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo.
Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de:
II — leis complementares;
III — leis ordinárias. [CF]
11. Analogicamente, por inafastável imposição sistemática:
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I — a forma federativa de Estado;
II — o voto direto, secreto, universal e periódico;
III — a separação dos Poderes;
IV — os direitos e garantias individuais.
12. Reprisa-se com Rudolf Stammler — jusfilósofo do direito alemão, da escola neocriticista de Baden, que tendia a enfatizar a lógica e a ciência[15] —, que:
Quem aplica um artigo do Código, aplica o Código todo.
Alexandre Langaro, advogado criminal. Autor de livros e artigos jurídicos. Estudou o NY Criminal Procedure Law em Nova York
[4][Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III — a dignidade da pessoa humana.
[5][Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LVII — ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória].
[6][Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LIV — ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV — aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
LXIII — o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado].
[8][Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948].
[9][Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 1953].
[10][Decreto 592, que promulga o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, 1966].
[11][Decreto 678, que promulga Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), 1969].
[12][Decreto 592, que promulga o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, 1966, arts. 3, caput, g].
[13][Decreto 678, que promulga Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), 1969, art. 8, 2, g].
[14][Eugenio Raúl Zaffaroni, in “El Derecho Penal en el Siglo XXI”].