Artigo
A CONFISSÃO COMO CIRCUNSTÂNCIA ATENUANTE
09/04/2020
- Fonte:
ESA/OABSP
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A CONFISSÃO COMO CIRCUNSTÂNCIA ATENUANTE
ILEGALIDADE DA SÚMULA 545/STJ
Alexandre Langaro*
1. Diz o Código Penal — CP:
Circunstâncias atenuantes
Art. 65 — São circunstâncias que SEMPRE[1] atenuam a pena:
d) confessado espontaneamente, perante a autoridade, a autoria do crime.
2. O STJ — Superior Tribunal de Justiça, no ponto, fixou esta orientação:
Quando a confissão for utilizada para a formação do convencimento do julgador, o réu fará jus à atenuante prevista no art. 65, III, d, do Código Penal. [Súmula 545]
3. Neste artigo, far-se-á apenas a análise legal da Súmula 545/STJ, confrontando-a com o art. 65, d, CP.
3.1. Possivelmente, e se for o caso, em outra oportunidade estudar-se-á a adequação, ou não, dessa súmula, às normas constitucionais e de Direito Internacional dos Direitos Humanos.
4. É patente que o enunciado da Súmula 545/STJ violenta, de forma direta, ostensiva, frontal e deliberada, o art. 65, d, CP. Isso ocorre porque a cabeça do artigo utiliza o advérbio ‘sempre’, que significa em todo tempo; a toda hora; perpetuamente ou eternamente; de um modo contínuo; em que há continuidade; constantemente ou continuamente[2].
5. Nesse sentido, a cláusula inicial da Súmula 545/STJ, ao assentar que ‘quando a confissão for utilizada para a formação do convencimento do julgador[3]’, contraria o caput do art. 65, CP, que, como já mencionado, faz uso do advérbio ‘sempre’, sem, contudo, fazer qualquer ressalva, ou restrição, ou condicionamento, ou distinção. Merece destaque, assim, que a lei — o CP — nem mesmo indiretamente, exige, para a incidência e a aplicação dessa atenuante, que a confissão — que pode ser simples ou qualificada —, tenha sido utilizada para a formação do convencimento do juiz [é elemento absolutamente neutro, então, relativamente à aplicação da atenuante da confissão, repita-se, a cláusula reveladora de que ‘quando a confissão for utilizada para a formação do convencimento do julgador]. Dado que:
Onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir[4].
6. A interpretação judicial não pode, claro, desconsiderar [contrariar, violar, violentar] o texto escrito da lei. Ao contrário, tem de dele partir. Tampouco pode inserir no preceito palavras que nele não se contém. Ainda mais para negar direitos à pessoa natural denunciada por ter cometido uma infração penal. É que a dogmática jurídica, como método, interpreta a lei, a partir de ‘dogmas’. Dogmas que, obviamente, são inalteráveis — ao reverso, ou seja, caso alteráveis, não seriam dogmas]. Se fosse diferente, então, insista-se, não seria interpretação e sim modificação ou criação das leis, tarefa, todavia, que não cabe, salvo anomalamente, ao Poder Judiciário. Nesse sentido:
De maneira mais sintética, eu diria que a ciência do direito pena que se ensina nas universitárias de todo o mundo se ocupa de interpretar as leis penais de modo harmônico para facilitar a vida dos juízes, promotores e defensores. Seu trabalho consiste basicamente na interpretação de textos com um método bastante complexo, que se chama dogmática jurídica, porque cada elemento em que a lei é decomposta deve ser respeitado como um dogma, visto que, do contrário, não se interpretariam a lei, mas sim a criariam ou a modificariam[5].
7. Analogicamente, por inafastável imposição sistemática, a interpretação ortodoxa e rígida dos valores, dos postulados e das normas constitucionais, também poderão ser invocados, como reforço argumentativo. Sobre o originalismo — um método de interpretação rígido da Carta Americana — o eminente [e morto] ministro Antonin Scalla, da Suprema Corte dos Estados Unidos, dizia que:
Eu não me importo se os autores da Constituição tinham algum significado secreto em mente quando escolheram as suas palavras. Eu entendo suas palavras da maneira como elas foram promulgadas ao povo dos Estados Unidos. A única Constituição boa é uma Constituição morta. O problema de uma Constituição viva é que alguém tem de decidir como ela deve crescer e quando novos direitos devem vir à tona[6].
8. A Súmula 545/STJ também impossibilita que o cidadão, ao responder à acusação, alegue, para fins de atenuação da pena, a existência de confissão qualificada, que ocorre quando se articula com a exclusão da antijuricidade. Assim:
Exclusão de ilicitude
Art. 23 — Não há crime quando o agente pratica o fato:
I — em estado de necessidade;
II — em legítima defesa;
III — em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.
9. Isso acontece porque, segundo essa súmula, há a necessidade de a confissão ter sido ‘utilizada para a formação do convencimento do julgador’. Logo, se o juízo afastar a incidência do tipo permissivo, arredará, também e consequentemente, a confissão qualificada. [O que também vale igualmente para a Teoria da Tipicidade Conglobante[7]]. Segundo alguns tribunais, locais, no entanto, o conceito de confissão — quando e se feita de forma qualificada, isto é, com base no art. 23, CP, ou de acordo com a Teoria da Tipicidade Conglobante — não é aproveitável [ou é inexistente] e, portanto, não se aplica. O que faz cair por terra — também por esse outro ‘motivo’ —, a atenuante a que se refere a letra d, da cabeça, do art. 65, CP.
10. Soma-se a isso tudo, ademais, que, a cláusula segundo a qual ‘quando a confissão for utilizada para a formação do convencimento do julgador’ é de dificílima verificação objetiva. A extrema subjetividade do enunciado, então, impede, caso a caso, o controle da legalidade do seu uso, por parte do Poder Judiciário. É que esse verbete sumular pode abrir campo propício, conforme a hipótese, para todos os tipos de abusos[8]. À medida que converte uma obrigação legal — imperativa, portanto e, que, por óbvio, escapa ao critério da disposição — em ato judicial meramente discricionário, regido pelos critérios da conveniência e da oportunidade. [‘Administrativização’ do Direito Penal ! ?].
11. Além disso, a Súmula 545/STJ não esclarece o que acontece se a confissão, apesar de ter poder, claramente, ter sido utilizada, em potência, para o convencimento do julgador, não o for, porque o magistrado a colocou de lado, hipertrofiando, no ponto, qualquer outro fundamento. Hipótese na qual, é claro, a atenuante também não seria aplicada, mantendo-se o castigo, por conseguinte, sem qualquer diminuição.
12. Não é demasia assinalar, consequentemente, a necessidade de a Súmula 545/STJ ser imediatamente cancelada. Por que mais do que negar vigência — dar como revogado —, esse enunciado contraria o art. 65, d, CP. Nessa mesma linha de entendimento, o item 55 da Exposição de Motivos n. 211 do Código Penal, de 9 de maio de 1983:
55. […] Beneficia-se, como estímulo à verdade processual, o agente que confessa espontaneamente, perante a autoridade, a autoria do crime, sem a exigência, em vigor, de ser a autoria "ignorada ou imputada a outrem".
Alexandre Langaro, advogado criminal. Autor de livros e artigos jurídicos. Estudou o NY Criminal Procedure Law em Nova York
[1][Destacado por conta].
[3][Optou-se, por razões didáticas, pelo não uso das reticências; a letra ‘Q’, na redação original da Súmula, está escrita com letra maiúscula].
[4][Ubi lex non distinguir nec nos distinguere debemus].
[5][Eugenio Raúl Zaffaroni, ‘A Questão Criminal’, 2013, Kindle, Amazon, Pos. 190 de 6.818, grifos aditados].
[6][Revista VEJA (versão digital), Edição 2466 de 24/2/2016].
[7][[Eugenio Raúl Zaffaroni, ‘Manual de Direito Penal Brasileiro’, 2019, RT].
[8][Dos Atos Ilícitos
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Art. 188. Não constituem atos ilícitos:
I — os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido;
II — a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente.
Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo].