Artigo
CRIMES OMISSIVOS IMPRÓPRIOS OU COMISSIVOS POR OMISSÃO
06/04/2020
- Fonte:
ESA/OABSP
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CRIMES OMISSIVOS IMPRÓPRIOS OU COMISSIVOS POR OMISSÃO
NÃO RECEPÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
VIOLAÇÃO DAS NORMAS DE DIREITOS INTERNACIONAIS DOS DIREITOS HUMANOS
*Alexandre Langaro
1. O art. 13, § 2º, CP — Código Penal, estabelece o seguinte:
Relação de causalidade
Art. 13 — O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.
Relevância da omissão
§ 2º — A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:
a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;
b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.
2. Nesse sentido, por exemplo, o motorista que causou um acidente de veículo e não socorreu a vítima, que veio a morrer, em consequencia dessa ocorrência, por ter batido fortemente a cabeça no para-brisa, pode, ao menos em tese, ser denunciado por homicídio doloso. É que, “com [o][1] seu comportamento anterior, [o motorista[2]] criou o risco da ocorrência do resultado”. Ao menos é o que diz o CP, na alínea c, do parágrafo segundo, do art. 13.
3. O Código Penal espanhol, Lei Orgânica 10/1995[3], de 23 de novembro, no ponto, determina, entretanto, o seguinte:
Artículo 11
Los delitos que consistan en la producción de un resultado sólo se entenderán cometidos por omisión cuando la no evitación del mismo, al infringir un especial deber jurídico del autor, equivalga, según el sentido del texto de la ley, a su causación. A tal efecto se equiparará la omisión a la acción:
a) Cuando exista una específica obligación legal o contractual de actuar.
b) Cuando el omitente haya creado una ocasión de riesgo para el bien jurídicamente protegido mediante una acción u omisión precedente.
4. Esse preceito, traduzido, quer dizer o seguinte:
Artigo 11
Os crimes que consistem na produção de um resultado só serão entendidos como cometidos por omissão quando a não evitação do mesmo, por violação de um dever legal especial do autor, for equivalente, de acordo com o significado do texto da lei, à sua causa. Para esse fim, a omissão será equiparada à ação:
a) Quando houver uma obrigação legal ou contratual específica de agir.
b) Quando o omitente tiver criado uma oportunidade de risco para o bem protegido legalmente por meio de um ato ou omissão anterior.
3. Ao contrário, portanto, do que acontece no CP brasileiro, o CP espanhol contém, no particular, a chamada “cláusula de equivalência” — que equipara a omissão à ação — a que se refere o caput do art. 11. Confira-se outra vez a redação da cabeça do artigo:
Os crimes que consistem na produção de um resultado só serão entendidos como cometidos por omissão quando a não evitação do mesmo, por violação de um dever legal especial do autor, for equivalente, de acordo com o significado do texto da lei, à sua causa. Para esse fim, a omissão será equiparada à ação.[4]
4. O CP brasileiro menciona apenas “a relevância da omissão”; não estabelece, contudo, a “equivalência” de que trata o CP espanhol. “Equivalente quer dizer, segundo Houaiss, “de valor idêntico; que possui a mesma força, peso, dimensões etc.”, “igual, próximo, semelhante”[5].
5. A CF[6] e o CP dizem que:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXXIX — não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I — direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho. [CF]
Anterioridade da Lei
Art. 1º — Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal. [CP]
6. Desse modo, à falta de tipo penal prevendo, um a um, todos os tipos omissivos impróprios — ou comissivos por omissão, se se preferir — ou, ainda, sem a existência, no sistema do ordenamento jurídico brasileiro, no mínimo, de um preceito de equiparação, análogo, por exemplo, ao do CP espanhol, acima descrito, tem-se como não recepcionado, pela Constituição Federal, o art. 13, § 2º, CP.
7. Nesse sentido, também, as normas de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Assim:
Art. 7º. Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela lei e de acordo com as formas por esta prescritas. [Declaração de direitos do homem e do cidadão — 1789]
Artigo XI
2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. [Declaração Universal dos Direitos Humanos, DHDU, 1948]
ARTIGO 7°
Princípio da legalidade
1. Ninguém pode ser condenado por uma acção ou uma omissão que, no momento em que foi cometida, não constituía infracção, segundo o direito nacional ou internacional. Igualmente não pode ser imposta uma pena mais grave do que a aplicável no momento em que a infracção foi cometida. [Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 1953]
ARTIGO 15
1. ninguém poderá ser condenado por atos omissões que não constituam delito de acordo com o direito nacional ou internacional, no momento em que foram cometidos. Tampouco poder-se-á impor pena mais grave do que a aplicável no momento da ocorrência do delito. Se, depois de perpetrado o delito, a lei estipular a imposição de pena mais leve, o delinqüente deverá dela beneficiar-se. [Decreto 592/1992, que promulga o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, 1966]
Artigo 9. Princípio da legalidade e da retroatividade
Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. [Decreto 678, que promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), 1969]
8. Como demonstrado, as normas superiores [constitucionais e de Direito Internacional dos Direitos Humanos] não autorizam — ao contrário do que ocorre com o Estado, que pode ser autorizado, mediante lei complementar, a legislar sobre as matérias listadas no art. 22, CF[7] — o Poder Judiciário — que não pode reescrever toda a Parte Especial do Código Penal[8] — a criar, hipótese a hipótese, ainda que por equiparação, tipos penais omissivos impróprios ou comissivos por omissão [roubo por omissão imprópria, homicídio comissivo por omissão, furto por omissão imprópria]. Essa tarefa cabe, todavia, ao Congresso Nacional, que exerce o Poder Legislativo.
9. Analogicamente — e a analogia benéfica é permitida em Direito Penal —, por inafastável imposição sistemática, invoca-se a Súmula Vinculante 46:
A definição dos crimes de responsabilidade e o estabelecimento das respectivas normas de processo e julgamento são da competência legislativa privativa da União.
10. O art. 13, § 2º, CP, então, não foi recepcionado pela Carta Política Federal.
11. A isso se soma, ademais, que o art. 13, § 2º, CP, viola frontal, direta, deliberada e ostensivamente, as normas de Direito Internacional dos Direitos Humanos.
12. De qualquer maneira e de lege ferenda[9], talvez se possa prever, nesses casos especiais, uma figura penal[10] diferenciada, apenada mais intensamente que a do crime culposo e menos vigorosamente do que a infração penal dolosa. Porém, é preciso, decerto, pensar e estudar, com verticalidade, sobre essa matéria.
*Alexandre Langaro, advogado criminal. Autor de livros e artigos jurídicos. Estudou o NY Criminal Procedure Law em Nova York
[1][Nota de Alexandre Langaro].
[6][Constituição Federal].
[7][CF
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I — direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;
[…]
Parágrafo único. Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo].
[8][CF
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...]
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Arts. 121 a 361].
[10][Art. 18 — Diz-se o crime:
Crime doloso
I — doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;
Crime culposo
II — culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.
Parágrafo único — Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.]