Artigo
FUGA E PRISÃO PREVENTIVA
01/04/2020
- Fonte:
ESA/OABSP
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FUGA E PRISÃO PREVENTIVA
Alexandre Langaro*
1. Este artigo esclarecerá se a fuga do suspeito/indiciado pode ou não respaldar a prisão preventiva [vale também para a temporária, Lei 7.960/1989]. Preventiva que tem os seus pressupostos e requisitos estabelecidos nos arts. 282 e 319, CPP — Código de Processo Penal[1].
2. Depende.
3. Cada caso tem de ser estudado de acordo com as suas peculiaridades concretas. Tendo em conta o postulado de humanidade e do Direito Penal do Fato[2].
4. Nesse sentido, se logo após o cometimento da infração penal o cidadão foge, há, ao menos em tese — está escrito EM TESE — pode haver campo propício à preventiva, ou à temporária. É que a fuga, nessa hipótese, teoricamente, pode obstar a instrução criminal. Mais uma vez falou-se “teoricamente” porque há muito se defende a tese — contra a qual, vale insistir, ainda não se deduziu qualquer réplica consistente —, de que o cidadão/suspeito/investigado não pode ser obrigado — porque não tem o dever jurídico — a comparecer à delegacia[3], para prestar esclarecimentos, à autoridade policial, tampouco perante os atos judiciais[4]. Nesse sentido:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III — a dignidade da pessoa humana;
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I — homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição [Direito Penal do Fato][5];
LIV — ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV — aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
LXIII — o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado. [Constituição Federal – CF]
Art. 367. O processo seguirá sem a presença do acusado que, citado ou intimado pessoalmente para qualquer ato, deixar de comparecer sem motivo justificado, ou, no caso de mudança de residência, não comunicar o novo endereço ao juízo. [CPP]
5. Ressalva-se também a inexistência da revelia no processo penal democrático. O que pode existir é a figura da contumácia[6], nunca, contudo, a revelia, que quer dizer ausência de defesa:
Art. 3º A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.
Art. 344. Se o réu não contestar a ação, será considerado revel e presumir-se-ão verdadeiras as alegações de fato formuladas pelo autor. [Código de Processo Civil — CPC]
6. Outra, todavia, é a situação em que o cidadão — que não fugiu depois de ter cometido a infração penal — o faz depois de saber que, contra si, foi decretada uma prisão preventiva. Aí o caso muda completamente de panorama. É quase como dizer, metaforicamente — mas não tão metaforicamente assim —, que o suspeito, ou o indiciado:
A) atuou em legítima defesa própria;
B) exercitou um direito natural, inerente a todo ser humano que está prestes a perder o bem maior [a liberdade];
C) que dele, ou seja, do investigado/cidadão, era inexigível, no particular, qualquer outro tipo de conduta diferente da fuga, na hipótese.
6.1. O tema será melhor desenvolvido abaixo.
7. E assim realmente o é. Basta lembrar a brutal diferença existente entre o dever ser[7] e o ser[8]. As imagens de que trata a nota de rodapé número 8 falam por si, dispensando-se, no ponto — no tocante aos efeitos criminógenos emanados do encarceramento —, maiores esclarecimentos. Bastando, então, lembrar, no particular, o autorizado magistério doutrinário de Basileu Garcia:
E, falando em necessidade da instituição de preceitos garantidores, êle [sic] se refere aos presídios de seu tempo [e hoje é muitíssimo pior!![9]], como sendo o horroroso recolhimento do desespero e da fome.
8. Nesse sentido, é firme e persistente a jurisprudência dos tribunais estaduais, federais e do STF.
9. No Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul — TJ/RS:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. PRISÃO PREVENTIVA. REQUISITOS. NECESSIDADE DE APLICAÇÃO DA LEI PENAL ANTE A EVASÃO DO DISTRITO DA CULPA. GRAVIDADE DO DELITO. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. INADMISSIBILIDADE..
Fugir é próprio do ser humano, instintivo do cidadão quando se vê ameaçado em seu direito de liberdade, fortemente impulsionado pelo medo e ameaça presentes na possibilidade de prisão processual. Noutro aspecto, a fuga, por si só, já impõe consequências aflitivas na vida do cidadão: privação de sua liberdade ante o estado de clandestinidade e penosos efeitos processuais como a suspensão do prazo prescricional e cerceamento (nos casos em que couber) do direito de apelar sem se recolher à prisão (art. 594, do Código de Processo Penal). […] [RESE 700 125 119 94]
10. Extrai-se do voto:
[….]
a — quanto ao primeiro elemento (frustração da aplicação da lei penal, ante a evasão do distrito da culpa), entendo que a argumentação padece de solidez porque fugir é próprio do humano, instintivo do cidadão quando se vê ameaçado e seu direito de liberdade.
E é exatamente de ameaça — iminente — que se trata no presente caso: o instituto jurídico da prisão processual — na perspectiva de Luigi Ferrajoi — tem na insegurança e no medo que gera no cidadão um dos seus efeitos perniciosos.
Como anota, de forma clara e convincente, o autor “el peligro de fuga, de hecho, está provocado predominantement, más que por el temor a la pena, por el miedo a la prisión preventiva. Si el imputado no estuviera ante esta perspectiva, tendria, por el contrário, al menos hasta la víspera de la condena, el máximo interés em no escapar y defenderse (Ferraroji, Luigi, “Derecho y Razón”, Madri, Trotta, 2001, p. 558).
[…]
A questão atinge contornos ainda mais expressivos se trata de uma realidade carcerária em que a ameaça de prisão (ou ameaça à liberdade) vem acompanhadas de outras ameaças ainda mais graves: ameaça à vida, à dignidade (em suas formas mais primárias de manifestação: direito à alimentação, direito ao descanso, ao banho …), ameaça à integridade física e moral, ameaça à saúde, à sexualidade, à liberdade de expressão … .
Poder-se-ia falar, então, na necessidade (anseio social) de reação punitiva contra a fuga ao processo, mas ela — a fuga — por si só já cumpre este papel.
Neste sentido — ainda com Ferrajoli — sem muito esforço pode-se perceber que o estado de clandestinidade e insegurança acarretando pela fuga à vida do acusado é, por si só, de caráter aflitivo, não raras vezes maior que a pena a ser eventualmente imposta em condenação (a exemplo do que pode ocorrer no caso em tela — mero delito por porte ilegal de arma).
11. No Tribunal Regional Federal da 4ª Região — TRF/4R:
HABEAS CORPUS. OPERAÇÃO SAÚDE. CRIMES DE QUADRILHA, CORRUPÇÃO ATIVA, CORRUPÇÃO PASSIVA, FRAUDE À LICITAÇÃO E PECULATO. PRISÃO TEMPORÁRIA. INTERFERÊNCIA NA COLHEITA DA PROVA. NÃO DEMONSTRADA.
1. Carece de fundamentação idônea o decreto de prisão temporária para viabilizar o prosseguimento das investigações, se não aponta fatos concretos que evidenciem a imprescindibilidade do cerceamento da liberdade dos pacientes para o êxito das investigações.
2. O cumprimento de todos os mandados de busca e apreensão nas residências dos investigados e o longo período de escuta telefônica indicam que os principais acervos de prova e indícios dos crimes de quadrilha, corrupção ativa, corrupção passiva, fraude à licitação e peculato — investigados no bojo da chamada 'Operação Saúde' — já foram obtidos pela autoridade policial.
3. Não se imputando aos pacientes uma conduta específica tendente a adulterar provas ou sanar irregularidades com o intuito de interferir na colheita do conjunto probatório deve ser revogada a prisão temporária. [HABEAS CORPUS 5006516-16.2011.404.0000/RS]
12. No STF:
PRISÃO PREVENTIVA — EXCESSO DE PRAZO — FUGA DO ACUSADO.
O simples fato de o acusado ter deixado o distrito da culpa, fugindo, não é de molde a respaldar o afastamento do direito ao relaxamento da prisão preventiva por excesso de prazo.
A fuga é um direito natural dos que se sentem, por isso ou por aquilo, alvo de um ato discrepante da ordem jurídica, pouco importando a improcedência dessa visão, longe ficando de afastar o instituto do excesso de prazo. [HABEAS CORPUS 84.851/BA, grifos aditados]
HABEAS CORPUS — ATO INDIVIDUAL — ADEQUAÇÃO.
O habeas corpus é adequado em se tratando de impugnação a ato de colegiado ou individual.
HABEAS CORPUS — INSTÂNCIA — SUPRESSÃO.
Revelando o habeas corpus parte única — o paciente, personificado pelo impetrante —, o instituto da supressão de instância há de ser tomado, no que visa beneficiá-la, com as cautelas próprias.
HABEAS CORPUS — INADEQUAÇÃO — BLOQUEIO DE VALORES.
O habeas corpus não é o meio adequado para impugnar ato alusivo a bloqueio de valores.
PRISÃO PREVENTIVA — IMPUTAÇÃO.
A gravidade da imputação, ante o princípio constitucional da não culpabilidade, é insuficiente a respaldar a prisão provisória.
PRISÃO PREVENTIVA — INSTRUÇÃO PROCESSUAL — EMBARALHAMENTO — SUPOSIÇÃO.
Descabe partir da capacidade intuitiva, supondo, sem indicar dado concreto, o embaralhamento da instrução criminal.
PRISÃO PREVENTIVA — DISTRITO DA CULPA — FUGA — RISCO — NEUTRALIDADE.
O risco de o acusado deixar o distrito da culpa não autoriza a prisão preventiva — inteligência do artigo 366 do Código de Processo Penal.
PRISÃO PREVENTIVA — MEDIDA CAUTELAR DIVERSA — ARTIGO 282, § 6º, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.
A prisão preventiva, por ser adequada somente quando inviável medida cautelar menos gravosa, mostra-se incompatível com a imposição simultânea de providência alternativa.
MEDIDA CAUTELAR — INSTRUÇÃO CRIMINAL — EXAURIMENTO.
Encontrando-se o processo-crime na fase de interrogatório dos acusados, não havendo provas a serem produzidas pelo Órgão acusador, surge a insubsistência de medida cautelar implementada com base em alegado risco de interferência na produção probatória. [HABEAS CORPUS 153313/SP, sem os grifos no original]
13. Soma-se a isso tudo, ademais, que, ninguém pode ser obrigado a recolher-se ao cárcere para discutir a legalidade da ordem prisional contra si expedida. É dizer, a Carta Federal — que veda a tortura, o tratamento desumano ou degradante e a pena cruel[10] —, não condiciona, inclusive considerando a ordem natural das coisas, o encarceramento do cidadão para que se assente, posteriormente, a ilegalidade da ordem que o mandou prender. Nesse sentido:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXXV — a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
14. O que o preceito constitucional revela, claramente, é que, para o cidadão acionar o Poder Judiciário, é bastante a existência de lesão ou ameaça a direito. Não está escrito, no art. 5º, XXXV, CF, qualquer outra exigência — como, por exemplo, o recolhimento ao cárcere; descabe ao intérprete, então, incluir, no texto constitucional, palavras que nele não se contém. A questão, no ponto, é apenas essa. Irrompendo daí, por conseguinte, a impertinência, grosseira e irracional — e a racionalidade decorre do postulado republicano, art. 1º, caput, CF[11] —, de inverter-se a natureza das coisas, isto é, recolher-se ao cárcere para, apenas depois, de debilitadíssimo[12], poder o cidadão — o ser humano[13], a pessoa natural — discutir a ordem prisional. No STF:
[…]
Prisão preventiva: garantia da aplicação da lei penal: fuga posterior à decretação: irrelevância. É irrelevante para a manutenção da prisão preventiva a fuga e consequente revelia do paciente, após o decreto da prisão cautelar, cuja validade contesta em juízo: agride à garantia da tutela jurisdicional exigir-se que, para poder questionar a validade da ordem de sua prisão, houvesse o cidadão de submeter-se previamente à efetivação dela: precedentes do Supremo Tribunal.
VI. Liberdade provisória concedida. [HABEAS CORPUS 85900/MG]
Alexandre Langaro, advogado criminal. Autor de livros e artigos jurídicos. Estudou o NY Criminal Procedure Law em Nova York
[1][CPP
[Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a
I — necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais;
II — adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.
§ 1oAs medidas cautelares poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente.
§ 2º As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público.
§ 3º Ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, o juiz, ao receber o pedido de medida cautelar, determinará a intimação da parte contrária, para se manifestar no prazo de 5 (cinco) dias, acompanhada de cópia do requerimento e das peças necessárias, permanecendo os autos em juízo, e os casos de urgência ou de perigo deverão ser justificados e fundamentados em decisão que contenha elementos do caso concreto que justifiquem essa medida excepcional.
§ 4º No caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas, o juiz, mediante requerimento do Ministério Público, de seu assistente ou do querelante, poderá substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em último caso, decretar a prisão preventiva, nos termos do parágrafo único do art. 312 deste Código.
§ 5º O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a medida cautelar ou substituí-la quando verificar a falta de motivo para que subsista, bem como voltar a decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.
§ 6º A prisão preventiva somente será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar, observado o art. 319 deste Código, e o não cabimento da substituição por outra medida cautelar deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto, de forma individualizada.
Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.
§ 1º A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 282, § 4º).
§ 2º A decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada.
Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva:
I — nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos;
II — se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro d 1940 — Código Penal.;
III — se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência;
IV — (revogado).
§ 1º Também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida.
§ 2º Não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia.
[5][Nota de Alexandre Langaro].
[7][Lei de Execução Penal — LEP
Art. 88. O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório.
Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular:
a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana;
b) área mínima de 6,00m2 (seis metros quadrados).
[9][Nota de Alexandre Langaro.
Instituições de Direito Penal, Vol. I, Saraiva, 2009, p. 670].
[10][Art. 5º, III E XLII, e, CF].
[11][CF
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: …].
[12][CF
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
[13][Declaração Universal dos Direitos Humanos — DUDH
Artigo 1°
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade].