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A LEGÍTIMA DEFESA NO “PACOTE ANTICRIME”

27/03/2020 - Fonte: ESA/OABSP

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                        A LEGÍTIMA DEFESA NO “PACOTE ANTICRIME”

 

Alexandre Langaro

 

1.                                 A Lei 13.964, de 24/12/2019, que instituiu o denominado “Pacote Anticrime”, inseriu um parágrafo único no art. 25, CP [Código Penal], com a seguinte redação:

 

Art. 25 Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

 

Parágrafo único. Observados os requisitos previstos no caput deste artigo, considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes. [Grifos aditados]

 

2.                                 O que mudou, no instituto da legítima defesa, com a introdução desse parágrafo único? Nada, absolutamente nada!

3.                                 Para melhor ser entendida, a resposta a essa pergunta tem de passar por uma investigação dogmática, ainda que, em princípio, preliminar e não exaustiva. Veja-se, por exemplo, primeiramente e outra vez, o que estabelece o caput do art. 25, CP — Código Penal:

 

Art. 25 Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

 

4.                                 O uso moderado dos meios — meios no sentido de recursos ou de possibilidades — necessários, portanto, traz a ideia de proporcionalidade. Proporcionalidade que é elemento inerente ao instituto da legítima defesa. Ao contrário, portanto, do exemplo citado por Mezger[1] — Edmund Mezger racionalizou, objetivou e aplicou o Direito Penal Nazista, a propósito, o Direito Penal Nazista era mesmo Direito Penal? — não atua em legítima defesa o paralítico que tem uma escopeta, ao seu lado, no fundo do quarto, a cinquenta metros da porta, e atira numa criança, quando ouve o barulho por ela feito, ao girar da maçaneta da porta[2].

5.                                 E os meios? Quais são, afinal, os meios necessários para repelir uma injusta agressão? São os meios disponíveis, em princípio, desde que, obviamente, guardem uma certa proporcionalidade — e a legítima defesa, por definição, tem de ser proporcional — à agressão, injusta, atual ou iminente. Há evidente excesso na legítima defesa de quem, por exemplo, embora tenha a disponibilidade [de uso imediato] de uma arma de fogo, dispara contra uma criança, de oito anos, que entrou no pátio residencial, para furtar uma bergamota, madura, da bergamoteira, plantada no jardim. O meio, nesse caso, então, é desproporcional, apesar de disponível. Logo, esse recurso, ou meio, não pode ser utilizado. Se o for, haverá ilegitimidade na e da defesa.

6.                                 O instituto da legítima defesa — que existe em todo o sistema do ordenamento jurídico[3]— pode ser utilizado, pelo cidadão, para defender qualquer bem jurídico. Não há, portanto, antijuricidade penal, porque a permissão emerge, insista-se, de todo o ordenamento jurídico, que é um sistema ordenado e não uma babel; a antijuridicidade, portanto, diz — e isso, repita-se, tem de ser considerado pelo penalista — para com todo o ordenamento jurídico.

7.                                 A legítima defesa tem como fundamento, dessarte, permitir que os cidadãos resolvam, de modo adequado e sem a intromissão do senhor ‘Estado’, os conflitos havidos na vida gregária. É dizer, ocorrida a situação potencialmente conflituosa, têm os ‘agentes’ de que trata o art. 25, CP, a possibilidade de resolver, no próprio ato, o conflito. E isso feito, a questão está encerrada, resolvida — o uso da redundância é proposital. Por exemplo, uma pessoa, na calçada, empurra à outra, que, de seu turno, devolve o empurrão e ambas se retiram do local: o conflito está resolvido — resolvido e não decidido verticalmente pelo Poder Judiciário. Impõe-se, no ponto, o registro de que nem toda defesa necessária é legítima, mas toda a defesa legítima tem de ser necessária[4]. Dado que a lei penal permite e a legítima defesa é um tipo[5] permissivo, porque faculta a reação do sujeito passivo da agressão injusta, atual ou iminente a repulsa, moderada [proporcional, minimamente], à injusta agressão[6]. No caso exemplificado, a agressão foi atual e o agredido usou um meio [recurso] proporcional igual ao meio utilizado pelo agressor e, sobretudo, disponível. Essa é a base maior da legítima defesa, isto é, a faculdade de resolução dos conflitos, pelos cidadãos, com moderação, sem a necessidade de interferência das autoridades e ou dos agentes estatais, que, por óbvio, não são onipresentes.

8.                                 Mas, se, no mesmo exemplo citado o das pessoas que se empurraram e resolveram o conflito , o agredido, no lugar de devolver o empurrão, sacar uma arma e atirar no cidadão que o empurrou, responderá[7], ante a absoluta e intolerável desproporcionalidade do meio utilizado, por homicídio doloso [a defesa, assim, é ilegítima, malgrado necessária, em tese], que pode ou não ser qualificado, conforme as circunstâncias em que ocorreu a infração penal. Nesse sentido, o CP:

 

Art. 23 Não há crime quando o agente pratica o fato:        

 

II em legítima defesa.

 

Excesso punível

 

Parágrafo único O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo. [grifos acrescentados]

 

9.                                 Ainda, nesse mesmo exemplo, se, ao invés do agredido  devolver o empurrão ao agressor, um terceiro que passar pelo local o fizer, também atuará em legítima defesa. Nesse caso, chama-se legítima defesa de terceiro. O art. 25, CP, diz que a repulsa dar-se-á à injusta agressão […] a direito seu ou de outrem. Logo, a legítima defesa de outrem é legítima defesa de terceiro. A ‘tese do homicídio’, acima descrita, portanto, também tem validade, e se aplica, na espécie, onde, se e quando o terceiro atuar.

10.                               O que diz, no ponto, o “Pacote Anticrime”? Confira-se, mais uma vez:

 

Parágrafo único. Observados os requisitos previstos no caput deste artigo, considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes. [Art. 25, CP]

 

11.                               O preceito começa remetendo aos pressupostos e aos requisitos da “legítima defesa”, passando a “considerar” o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes. Soma-se a esse vazio invencível, todavia, a simples troca de palavras: “repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem” [constante do atual caput do art. 25, CP] por “repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes” [constante do parágrafo único do atual art. 25, CP]. É dizer, trocou-se seis por meia dúzia, mediante evidente desperdício e esvaziamento de recursos — humanos, inclusive — pagos, arduamente, pelo contribuinte.

12.                               Com bem se sabe, entretanto, a polícia, normalmente e por exemplo, a militar, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, ao atuar, fá-lo, como regra talvez em noventa e nove por cento dos casosem legítima defesa de terceiros, ou seja, das pessoas e do patrimônio alheios [ao menos no campo do dever ser, claro]. Daí que, assim como qualquer cidadão, o agente policial pode matar, quando e se configurados os pressupostos e os requisitos da legítima defesa, própria ou de terceiro, respondendo, decerto, pelo excesso, doloso ou culposo. Nisso, claro, não há, entretanto, qualquer novidade.

13.                               Então, suprima-se, para fins de estudo do caso ‘concreto’, o parágrafo único do art. 25, CP, acrescentado pelo “Pacote Anticrime”. Suponha-se que, nesse contexto insista-se que não há, ainda, no sistema do ordenamento jurídico, para fins de estudo, o parágrafo único do art. 25, CP, um agente policial descubra um cativeiro onde seis sequestradores integrantes de uma organização criminosa [ORCRIM] ‘especializada’ nesse delito, mantém, há cinco dias, duas vítimas, uma delas menor, com o fim de obter, por exemplo, a título de preço do resgate, uma determinada quantia de dinheiro em espécie[8]. A polícia ‘estoura’ o cativeiro e os delinquentes flagrados, começam a atirar contra os policiais que, contudo, reagem, matando todos os integrantes da ORCRIM. Lembre-se [repita-se], que o fato ‘aconteceu’ no início do ano de 2019, antes, portanto, do “Pacote Anticrime”. Presente o quadro, pergunta-se se os agentes policiais responderão por alguma infração penal, por homicídio doloso, por exemplo? Na exata situação narrada, o “não” é a resposta correta. É que os agentes atuaram em legítima defesa própria e de terceiros, no caso, dos sequestrados, é certo, um deles menor. É bom lembrar, nesse particular, ao contrário do que se pode imaginar, que não toca, aos agentes estatais, o “dever legal de matar[9]”, art. 23, III, CP[10]. [Esclarece-se, com exemplos e rapidamente, a diferença existente entre o estrito cumprimento de dever legal e o exercício regular de direito. Usar-se-á, para tanto, didaticamente, o art. 301, CPP (Código de Processo Penal), para melhor exemplificar ambos os institutos]:

 

Art. 301.  Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito. [Grifado por conta]

 

14.                               O agente policial, ao “prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”, atua no estrito cumprimento de dever legal; o particular ou “qualquer do povo” —, todavia, que “prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”, fá-lo-á — a hipótese é de pouquíssima frequência no mundo da vida — no exercício regular de direito.

15.                               No caso da extorsão mediante sequestro, antes analisado, com ou sem o parágrafo único, inserido no art. 25, CP, pelo “Pacote Anticrime”, os policiais atuaram justificadamente, de acordo, pois, com o tipo permissivo a que se refere o [atual] caput do art. 25, CP, que regula o instituto da legítima defesa. Inexiste, portanto, qualquer antijuridicidade na atuação dos agentes, nessa hipótese, dado que o ordenamento jurídico os respaldava [e os respalda]. E sem antijuridicidade não há, por óbvio, infração penal. Nesse sentido:

 

 

Conforme os princípios da ciência jurídica alemã, os penalistas constroem um conceito jurídico do delito que se chama teoria geral do delito. As discussões sobre essa teoria são praticamente intermináveis, mas se trata, em geral, de uma ordem prioritária conceitual para estabelecer frente a uma conduta se ela é ou não delitiva com vistas a uma sentença.

 

Para isso, diz-se que o delito é uma conduta típica, antijurídica e culpável. Ou seja, antes de tudo deve ser uma ação humana, isto é, dotada de vontade. Em segundo lugar, deve estar proibida pela lei, ou seja, cada tipo é a descrição que a lei faz de um delito: matar, apoderar-se de uma coisa móvel alheia etc. Em terceiro lugar, não deve ser permitida, como acontece no caso de legítima defesa ou de estado de necessidade. Por último, deve ser culpável, ou seja, reprovável ao autor: não o é quando este não sabia o que fazia, estava louco (inimputável) etc.[11]

 

16.                               Daí a patente inocuidade e a irracionalidade, chapada, desse “novo” parágrafo único, acrescentado ao art. 25, CP, pelo “Pacote Anticrime”.

17.                               O que acontece porque tal e como adverte Zaffaroni , agora quem as elabora [as leis penais] são os assessores dos políticos, conforme a agenda que lhes marcam os meios de comunicação de massa[12]. Isso, contudo, conforme Bauman, morto em 2017, citando d’Angerson, não constitui qualquer novidade:

 

Repartições centrais cresceram depressa em tamanho e influência. Conforme já observara d’Argenson em 1733:

 

 

O montante de trabalho de repartição imposto aos nossos chefes de departamentos é muito desanimador. Tudo passa pelas mãos deles, só eles decidem o que deve ser feito, e, quando seu conhecimento não é tão amplo quanto sua autoridade, eles devem deixar tarefas para os membros subordinados de suas equipes, e isso tem como resultado estes últimos se tornarem os verdadeiros governantes do país.[13]

 

Alexandre Langaro, advogado criminal. Autor de livros e artigos jurídicos. Estudou o NY Criminal Procedure Law em Nova York

 

[2][Tratado de Derecho Penal, Tomo I].

[3][Código Civil. Art. 188. Não constituem atos ilícitos:

I os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido].

EXEMPLO na fila, a pessoa pode defender o seu lugar se alguém, que não tem preferência, passar-lhe na frente. Como se faz isso? Passando na frente da pessoa que lhe tomou ou lugar. Atua em legítima defesa quem age assim, “defendendo o seu lugar na fila”, no caso.

[4][Eugenio Raul Zaffaroni, “Estructura Básica Del Derecho Penal” 2].

[5][O tipo, palavra originada do alemão tatbestand, é o texto da lei; pode ser proibitivo, mandamental ou permissivo. O tipo do crime de homicídio, proibitivo, está previsto no art. 121, CP. O tipo, permissivo, da legítima defesa, está previsto no art. 25, CP. O tipo do art. 135, CP, é mandamental, ao estabelecer infração penal de omissão de socorro].

[6][Não há legitimidade na repulsa à agressão justa, e sim, em princípio estado de necessidade. Por exemplo, o policial detém o cidadão A, por informação recebida de B, no sentido de que o detido, A, teria furtado a sua carteira [mas não houve furto e sim uma brincadeira de mau gosto, ou, em tese, denunciação caluniosa, ou, ainda, comunicação falsa de crime ou contravenção, arts. 339 e 340, CP, conforme o dolo do agente]. O policial atuou de boa-fé e, portanto, justificadamente, presente o estrito cumprimento do dever legal, ao ser informado sobre o “furto” [se tivesse permanecido inerte, contudo, o policial, teoricamente, poderia ter prevaricado, art. 319, CPC]. Já A, detido, poderia, no caso, ao menos em tese, fugir, fundado no estado de necessidade.

[7][No CPP, Código de Processo Penal, analogicamente, por inafastável imposição sistemática:

Art. 284. Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso].

[8][Extorsão mediante seqüestro

Art. 159 Seqüestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate:

Pena reclusão, de oito a quinze anos.

§ 1o Se o seqüestro dura mais de 24 (vinte e quatro) horas, se o sequestrado é menor de 18 (dezoito) ou maior de 60 (sessenta) anos, ou se o crime é cometido por bando ou quadrilha.

Pena reclusão, de doze a vinte anos.”]

[9][Salvo o caso do carrasco, na hipótese de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX, CF, que  executa a pena de morte, por fuzilamento. Nesse sentido, os arts. 56 e 57 do Código Penal Militar:

Pena de morte

Art. 56. A pena de morte é executada por fuzilamento.

Comunicação

Art. 57. A sentença definitiva de condenação à morte é comunicada, logo que passe em julgado, ao Presidente da República, e não pode ser executada senão depois de sete dias após a comunicação.

Parágrafo único. Se a pena é imposta em zona de operações de guerra, pode ser imediatamente executada, quando o exigir o interesse da ordem e da disciplina militares.

[10][Exclusão de ilicitude

Art. 23 Não há crime quando o agente pratica o fato:

I em estado de necessidade;

II em legítima defesa;

III em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito].”

[11][Zaffaroni, Eugenio Raúl. A questão Criminal. Revan. Edição do Kindle, Pos. 207 de 6818, 2013, sem os grifos no original].

[12][Idem, Pos. 228 de 6818].

[13][Bauman, Zygmunt (2010-09-09T22:58:59). Legisladores e intérpretes: Sobre modernidade, pós-modernidade e intelectuais. Zahar. Edição do Kindle].

 

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