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REFLEXÕES A PARTIR DO LIVRO: ‘IDEIAS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO’.

20/08/2020 - Fonte: ESA/OABSP

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Reflexões a partir do Livro: ‘Ideias para adiar o Fim do Mundo’.

Renata Miranda Lima[1]

Se pararmos para refletir os eventos que vem acontecendo no Brasil e no mundo nos últimos cinco anos, verificaremos que uma corrente de diversos acontecimentos tem lesado direitos e levado a vida de diversos cidadãos de forma rápida e nefasta. Cita-se a título de exemplo o quê aconteceu em Mariana[2], Brumadinho[3], o aumento do terror e do medo ao terrorismo[4], mortes que atingem os imigrantes[5] e,  mais recentemente, a pandemia que acometeu a todas e todos unindo os diversos países a uma guerra contra um inimigo comum, o Covid-19.

Todos esses acontecimentos parecem anunciar que o espaço que vivemos está dando sinais de que precisamos repensar nossas práticas, escolhas sociais e políticas. As complexidades ganham contornos maiores em todas as áreas da vida social em razão da globalização que faz com que os espaços e eventos deixem de ser locais e passem a ser desteritorializados. Nesse mundo, sem limites e extremos, os danos surgem de ações ou omissões de empresas internacionais, de desastres naturais, do enfraquecimento das políticas nacionais, direitos sociais entre outros eventos. 

Refletir este cenário exige um olhar interdisciplinar, portanto, considera-se que apenas a ciência do Direito não consegue responder a essa realidade. Por essa razão este texto passa a refletir os fatos a partir das ideias de Ailton Krenak. É importante destacar que os Krenaks são os últimos Botocudos do Leste, vítimas de constantes massacres chamadas de "guerras justas" pelo governo colonial. Hoje, eles vivem em uma área reduzida reconquistada com grandes dificuldades[6].

Destaca-se que o nome Krenak é constituído por dois termos: “um é a primeira partícula, kre, que significa cabeça, a outra, nak, significa terra” [7]. Assim, Krenak significa uma herança que “recebemos dos nossos antepassados que é justamente as nossas memórias de origem, que nos identifica como cabeça da terra” [8]. A partir dessa ideia o autor expõe que é impossível conceber uma humanidade sem conexão e comunhão com a terra[9]·. 

Após esse retrato que traz um pouco da origem do autor, se verifica momento propício para iniciar a exposição das ideias de Ailton Krenak em seu livro ideias para adiar o fim do mundo. Esse começa sua reflexão colocando em dúvida a ideia que foi construída até então de humanidade, especificamente porque essa foi pautada em escolhas erradas que justificaram o uso da violência pelos colonizadores sob a premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava trazer uma humanidade aos povos obscurecidos que era a população nativa indígena e a população negra sequestrada. Assim, a civilização precisava ser aderida por essas pessoas para que passassem a integrar o ‘grupo da humanidade’ e do mundo civilizado[10].

Contudo, a ideia de humanidade se restringia a uma única visão que os Estado considerados soberanos e as organizações e entidades nacionais e internacionais criadas por eles enxergavam. Assim, não detém humanidade o que é objeto de comercialização ou é passível de ser transformado em mercadoria. Essa inclusive é a ideia incorporada pela ciência jurídica e a doutrina majoritária do Brasil. Logo somente o ser humano é dotado de humanidade.

Se contrapondo a essa ideia o autor aponta que ao não reconhecer que o rio que seca ou que é cheio de resíduos também é o nosso avô, que a montanha explorada e transformada em mercadoria em algum lugar também é nosso avô,  avó,  mãe,  irmão. Eles são seres que querem continuar compartilhando a vida nesta casa comum que chamamos Terra[11]. Com fundamento nessa visão restrita de humanidade estamos descaracterizando outras humanidades e, isso gera terreno propício para que as mortes e violações desses seres sejam justificáveis. Corrobora o exposto a seguinte frase:

 

Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista. Do nosso divórcio das integrações e interações com a nossa mãe,

a Terra resulta que ela está nos deixando órfãos, não só aos que em diferente graduação são chamados de índios, indígenas ou povos indígenas, mas a todos. Tomara que estes encontros criativos que ainda estamos tendo a oportunidade de manter animem a nossa prática, a nossa ação, e nos deem coragem para sair de uma atitude de negação da vida para um compromisso com a vida, em qualquer lugar, superando as nossas incapacidades de estender a visão a lugares para além daqueles a que estamos apegados e onde vivemos, assim como às formas de sociabilidade e de organização de que uma grande parte dessa comunidade humana está excluída, que em última instância gastam toda a força da Terra para suprir a sua demanda de mercadorias, segurança e consumo[12].

 

Para além dessa reflexão conectada com a terra sobre humanidade, o autor Ailton Krenak questiona se existe realmente essa humanidade comumente aceita pela sociedade considerada civilizada ou se essa é uma ficção. Este questionamento é sustentado, tendo em vista que o ser humano é colocado em situações e modos de viver que não são capazes de permitir e existir dignamente[13] e, este cenário é corroborado quando se atenta às desigualdades sociais ainda presentes nos países colonizados.

Ainda hoje há um continuum dessas desigualdades plantadas no período colonial e elas se reelaboram e se reproduzem na figura da favela e dos favelados, pois estes locais são ausentes de humanidade[14] e produzem situações que geram a morte pela ausência de saneamento básico, saúde, água potável, moradia digna e trabalho. Assim o autor questiona: porque nos juntamos e nos mantemos no grupo da humanidade se essa civilização é um continuam da desigualdade e nos gerado a morte?

O livro de Ailton Krenak é um convite para refletirmos outras formas de humanidades deixando de olhar apenas através das lentes que os Estados colonizadores apresentaram para que passemos a perceber  a humanidade dos ancestrais nativos da terra que reconhecem a natureza como nossa mãe, o rio como nosso avô e o monte como nossa irmã e,  se tudo ao nosso redor é dotado de humanidade porque feriríamos a natureza?

Para exemplificar o quão restrita é a visão de humanidade para os países colonizadores, o autor Ailton Krenak retrata um episódio em que os Ingleses queriam transformar em parque um monte sagrado no Quênia. Neste cenário um conflito de visões se estabeleceu porque os Ingleses não viam o monte como dotado de humanidade, ou como sua irmã e essa era a compreensão dos Quenianos. O autor destaca que essa sociedade moderna não confere humanidade ao rio e ao monte[15]. Por isso ela não percebe que o Rio doce, Brumadinho e Mariana sofreram um crime que os colocarão em coma e, que nem tudo é racional ou economia.

Essa ideia de transformação em mercadoria e dinheiro também esta presente no livro de Carolina de Jesus[16] intitulado ‘Quarto de despejo’ que ao tentar comprar carne à autora observa que o homem branco europeu lucra com a vaca enquanto morta e viva. Quando morta ela é selecionada, catalogada por partes e assim, vende os pedaços com preços diferentes. Ela ressalta que essa capacidade destrutiva e de comercialização das coisas é invenção do homem branco europeu, e que ela não tem nada haver com isso, mas que estava inserida nessa engrenagem capitalista e ao mesmo tempo era moída pelo sistema, pois não estava ao seu alcance acessar gêneros alimentícios e que apesar de não mais combater a escravidão por ser negra, combatia a escravidão da fome todos os dias na década de 50-60 em São Paulo- Brasil [17].

Considera-se que esta desumanização é a principal estratégia criada pelas grandes incorporações e países para fazer com que a humanidade viva em ambientes artificiais e para que possam devorar as florestas, montanhas e rios. Depois, vendem a ideia de necessidade de sustentabilidade sob a ameaça do fim do mundo retirando a alegria de viver e convertendo cidadãos em meros consumidores, enquanto as grandes empresas transformam a terra em mercadoria. Toda artificialidade gera um mal social, mas as empresas também ganham com isso, eles enchem de remédios os moradores da terra. Inclusive essa ideia de humanidade construída adoece, pois além de devorar toda a natureza extingue toda a subjetividade, pois o mundo moderno e globalizante quer fazer com que deixemos de ser singulares para sermos um único modelo[18]·. Segundo o autor Ailton Krenak a única forma de adiar o fim do mundo é contando uma nova história e reafirmando a nossa singularidade, ancestralidade e nossas raízes[19]. Assim, verifica-se que o caminho é reafirmar e reivindicar a nossa subjetividade reconhecendo que somos diferentes e festejando as diferenças. Essas reflexões vão de encontro ao que foi desenvolvido por bell hooks no que diz respeito ao ensinar a transgredir. A autora destaca que o processo de pensamento crítico gera a descoberta do seu lugar no mundo. A partir desse processo se reconhece as diferenças e diversidades e consequentemente se fortalece a ideia de adiar o fim do mundo, pois ao reconhecer o seu lugar no mundo se valoriza e festeja as diferenças, e assim, os discursos uniforminzadores, inferiorizastes que criam as diferenças e geram dores não encontrará lugar. Portanto, será possível uma cura interna, reconciliação e valorização das diferenças.

A autora bell hooks destaca que quando estivermos curados estaremos preparados para transgredir os limites e valores que a sociedade impôs por meio de uma prática pedagógica que ensina a transgredir os limites hegemônicos de humanidade e a contar a nossa história[20]. Essa ideia tem ponto de encontro com as ideias de Ailton Krenak que aponta a necessidade de nos reconectarmos com a nossa ancestralidade, com a terra, pois somente assim, seremos capazes de continuar contando a nossa história[21]. Mas somente com o pensamento critico será possível questionar o que está posto ao nosso redor e fazer dos locais sem saída encruzilhadas que nos levam a outros caminhos.

Por fim, a última reflexão que se pretende fazer diz respeito ao livro de Ailton com o livro de Sueli Carneiro. Ailton aponta que não tentamos transcender esses limites e ideias já postas porque temos medo de cair e temos medo do fim do mundo[22]. Mas não há queda mais profunda e fim do mundo mais tenebroso e iminente do que quando você tem um mundo dividido por muros. Essas questões são trazidas por Sueli ao apontar os indicadores sociais que demonstra que temos dois países dentro de uma única Nação.

Segundo a autora, ao medir o IDH apenas da população branca teremos um índice similar ao de um país de primeiro mundo. Ao medirmos o IDH apenas das pessoas negras no país, os resultados são similares dos países colonizados em que houve o Apartheid [23]. Este é um retrato de dois mundos que são separados por muros sociais. Essa ideia é reforçada no Livro de Carolina Maria de Jesus que fala que no Brasil aos pobres resta a favela que é o quarto que se despeja tudo que não tem valor para a sociedade, eles são os favelados que não conseguem comer, trabalhar, estudar, cuidar da saúde e por isso eles não vivem e quando vivem se confundem com zumbis, são mortos vivos. Retomando a ideia de Ailton, não há possibilidade de cairmos mais e de estarmos em um fim do mundo mais iminente que esse em que muros sociais nos separam e que alguns vivem e outros se deparam com condição de morte.

Estas reflexões me conduzem a conclusões de que é necessário resgatar a humanidade dos considerados sub-humanos e de toda natureza que nos cerca, para tanto, é preciso reafirmar a nossa história, ancestralidade e singularidade sempre contar e celebrar as diversas humanidades. Somente assim é possível adiar o fim do mundo.



[1] Advogada. Mestre em Direito. Pesquisadora da Escola Superior da Advocacia ESA/OAB-SP. Coordenadora Adjunta do Núcleo de bolsas e desenvolvimento Acadêmico do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM. Pós-Graduada pela Universidade Castilla La Mancha - UCLM em negociação, conciliação e mediação em resolução de conflitos. Pós-Graduada pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM em parceria com o Instituto Ius Gentium Conimbrigae (IGC) Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em Direitos Fundamentais Internacionais.

[2] EL PAIS. A cidade que vive sob os efeitos da ‘lama invisível’. 2020. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2020-01-23/a-cidade-que-vive-sob-os-efeitos-da-lama-invisivel.html>.

[3] VEJA. Rompimento de barragem deixa indígenas com baixa oferta de água potável. Funai afirmou que mais de 80 índios que vivem à margem do rio Paraopeba estão com pequenas reservas de água por causa de mar de lama. 2019. Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/rompimento-de-barragem-deixa-indigenas-com-baixa-oferta-de-agua-potavel/

[4] EL PAIS. A ameaça do medo. O jihadismo vencerá se a Europa romper os consensos e se voltar para o extremismo. 2016. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/07/26/opinion/1469557589_974631.html>.

[5]GLOBO. Imigrantes sírios morrem afogados em tentativa de chegar à Grécia. 2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/09/imigrantes-sirios-morrem-afogados-em-tentativa-de-chegar-grecia.html>.

R7. Morte de imigrantes aumenta entre venezuelanos e centro-americanos. 2019. Disponível em: <https://noticias.r7.com/internacional/morte-de-imigrantes-aumenta-entre-venezuelanos-e-centro-americanos-18062019>.

[6] Povos indígenas no Brasil. Disponível em<https://www.indios.org.br/pt/Povo:Krenak>.

[7]  KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Editora, Campanhia das Letras, p 24.

[8] KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Editora, Campanhia das Letras, p 24.

[9] KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Editora, Campanhia das Letras, p 24.

[10] KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Editora, Campanhia das Letras, p 8.

[11]  KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Editora, Campanhia das Letras, p 24.

[12] KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Editora, Campanhia das Letras, p 24.

[13] KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Editora, Campanhia das Letras, p 8-9.

[14] KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Editora, Campanhia das Letras, p 8-9.

[15] KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Editora, Campanhia das Letras, p 10.

[16] Negra, catadora de papel e favelada, Carolina Maria de Jesus foi uma autora improvável. Nasceu em 14 de março de 1914 em Sacramento, Minas Gerais, em uma comunidade rural, filha de pais analfabetos. Foi maltratada durante a infância, mas aos sete anos frequentou a escola — em pouco tempo, aprendeu a ler e escrever e desenvolveu o gosto pela leitura. Em 1937, após a morte da mãe, ela mudou para São Paulo. Aos 33 anos, desempregada e grávida, mudou-se para a favela do Canindé, na zona norte da capital paulista. Trabalhava como catadora de papel e, nas horas vagas, registrava o cotidiano da favela em cadernos que encontrava no material que recolhia.

[17] JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo- Diário de uma favelada. Edição popular Ática, 2014.

[18] KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Editora, Campanhia das Letras, p 13-16.

[19] KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Editora, Campanhia das Letras, p 20.

[20] hooks, beel. Ensinando a transgredir - Educação como prática de liberdade. Editora WMF Martins Fonte: São Paulo, 2013.

[21] KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Editora, Campanhia das Letras.

[22] KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Editora, Campanhia das Letras.

[23] CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Sele Negro. 2011, p. 49-57.

 

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