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RECURSO EXTRAORDINÁRIO EM MATÉRIA PENAL

12/03/2020 - Fonte: ESA OAB SP

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RECURSO EXTRAORDINÁRIO EM MATÉRIA PENAL[1]

 

O recurso extraordinário, ao contrário do que se apregoa, é veículo – ou instrumento, se se preferir – frequentemente utilizável nas persecuções penais[2], para materializar, no mundo da vida, o postulado de humanidade, em ordem a promover, e a resguardar, a dignidade da pessoa humana.

Há, assim e por óbvio, variadíssimos motivos para o uso reiterado do recurso extraordinário em matéria penal.

O principal deles, decerto, tal e como já antecipado, no primeiro parágrafo deste artigo, é que a persecução penal – qualquer persecução penal, claro – pode, ao menos teoricamente, numa de suas etapas – e isso ocorre com perturbadora regularidade –, violar o postulado da dignidade da pessoa humana, valor fundante do Estado Democrático de Direito:

 

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

 

III – a dignidade da pessoa humana.

 

Assim[3]:

 

 

Por isso que o CED, o Código de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil, no art. 23, caput e parágrafo único, o principal dispositivo normativo escrito sobre a defesa penal, determina que “é direito e dever do advogado assumir a defesa criminal, sem considerar sua própria opinião sobre a culpa do acusado. Não há causa criminal indigna de defesa, cumprindo ao advogado agir, como defensor, no sentido de que a todos seja concedido tratamento condizente com a dignidade da pessoa humana, sob a égide das garantias constitucionais.

 

[…]

 

Ao advogado, em consequência disso tudo, assiste o direito, e toca o dever, ético, fundamental e inexorável, de defender, em sede de juízo penal, a pessoa, natural, acusada de ter praticado um crime, qualquer crime. (Independentemente do pensamento, ou da convicção, que, no ponto, tiver sobre a responsabilidade penal do imputado.) O que se faz mediante a invocação, na resposta criminal, do postulado da dignidade da pessoa humana, das liberdades, dos direitos fundamentais e das garantias processuais, ou judiciais. A forma defensiva é inteiramente livre. Não há engessamento sobre o conteúdo da resposta. No tocante à oportunidade, ela tem de ver avaliada, hipótese a hipótese, processo a processo.

 

É nesse sentido, então, na busca de um Direito do Fato[4][5] e, sobretudo, de um Direito Penal mais Humano, que há campo propício para a interposição, caso a caso, do recurso extraordinário [penal], a partir do desenvolvimento de uma dialeticidade própria, mediante fundamentação vinculada.

Vale destacar, nesse sentido, que, o resumo, simples, universal e eficaz dos Direitos Humanos é o de que todo o ser humano é uma pessoa e tem de ser tratado como tal. Nesse sentido:

 

Art. 1º. Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum. [Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1769]

 

Artigo 1°

 

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade. [Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948]

 

ARTIGO 3°

 

Proibição da tortura

 

Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes. [Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 1950, em vigor a partir de 1953]

 

ARTIGO 10

 

1. Toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana. [Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, 1966, promulgado pelo Decreto 592/1992]

 

Artigo 5º – Direito à integridade pessoal

 

1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.

 

2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano. [Convenção Americana Sobre os Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), 1969, promulgado pelo Decreto 692/1992]

 

Nesse sentido, LUIZ REGIS PRADO[6]:

 

 

O homem deixa de ser considerado apenas como cidadão e passa a valer como pessoa, independentemente de qualquer ligação política ou jurídica. O reconhecimento do valor do homem enquanto pessoa implica o surgimento de um núcleo indestrutível de prerrogativas que o Estado não pode deixar de reconhecer, verdadeira esfera de ação dos indivíduos que delimita o poder estatal. Verifica-se, assim, “um deslocamento do Direito do plano do Estado para o plano do indivíduo, em busca do necessário equilíbrio entre a liberdade e a autoridade”.

 

Com o advento da Constituição Federal de 1988, a dignidade da pessoa humana foi guindada à categoria de valor fundamentador do sistema de direitos fundamentais (art. 1.º, III, CF).

 

[…]

 

Como viga mestra, fundamental e peculiar ao Estado democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana há de plasmar todo o ordenamento jurídico positivo – como dado imanente e limite mínimo vital à intervenção jurídica. Trata-se de um princípio de justiça substancial, de validade a priori, positivado jurídico-constitucionalmente. Nesse sentido, é possível afirmar que a dignidade da pessoa humana pode assumir contornos de verdadeira categoria lógico-objetiva ou lógico-concreta, inerente ao homem enquanto pessoa. É, pois, um atributo ontológico do homem como ser integrante da espécie humana – vale em si e por si mesmo. Daí por que toda lei que viole a dignidade da pessoa humana deve ser reputada como inconstitucional. Assim, pode-se afirmar que, “se o Direito não quiser ser mera força, mero terror, se quiser obrigar a todos os cidadãos em sua consciência, há de respeitar a condição do homem como pessoa, como ser responsável”, pois, “no caso de infração grave ao princípio material de justiça, de validade a priori, ao respeito à dignidade da pessoa humana, carecerá de força obrigatória e, dada sua injustiça, será preciso negar-lhe o caráter de Direito”. Observe-se, ainda, que a força normativa desse princípio supremo se esparge por toda a ordem jurídica e serve de alicerce aos demais princípios penais fundamentais. Desse modo, por exemplo, uma transgressão aos princípios da legalidade ou da culpabilidade implicará também, em última instância, uma lesão ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

 

Daí a incidência, no particular e igualmente, da lição, magistral, do Professor PAULO CÉSAR BUSATO[7], para quem:

 

 

[…] o Estado democrático se identifica com o princípio da culpabilidade, porquanto a ideia de pôr o Estado a serviço da defesa dos interesses dos cidadãos significa respeitá-lo individualmente e limitar a intervenção Estatal à efetiva atuação culpável do sujeito[8].

 

O recurso extraordinário terá de partir desse ponto fundamental, considerados os fatos concretos acertados pelo tribunal local, federal ou estadual. Esses fatos, concretos e incontroversos, portanto, terão de ser inseridos, para fins da interposição do recurso extraordinário, na estrutura normativa do art. 1º, caput e III, CF. [Se os tribunais locais, todavia e por exemplo, disserem que uma bola é um carro, esse fato não poderá ser modificado mediante o recurso extraordinário. O que, porém, poderá ser articulado, na via estreita do recurso extraordinário, é que, pelo fato de uma bola ser um carro, as consequências jurídicas decorrentes desse ‘fato incontroverso’ são diferentes daquelas apontadas pelo acórdão. Ou seja, como “carro”, ele tem a capacidade de se locomover sobre rodas; ao passo que a corte local assentou que o carro é estático e não tem a faculdade de se mover. No Supremo:

 

O acervo probatório que efetivamente serviu para condenação do paciente foi aquele obtido no inquérito policial. Segundo entendimento pacífico desta Corte, não podem subsistir condenações penais fundadas unicamente em prova produzida na fase do inquérito policial, sob pena de grave afronta às garantias constitucionais do contraditório e da plenitude de defesa. [HC 103.660]

 

A denúncia deve conter a exposição do fato delituoso, descrito em toda a sua essência e narrado com todas as suas circunstâncias fundamentais. Essa narração, ainda que sucinta, impõe-se ao acusador como exigência derivada do postulado constitucional que assegura, ao réu, o exercício, em plenitude, do direito de defesa. Denúncia que deixa de estabelecer a necessária vinculação da conduta individual de cada agente aos eventos delituosos qualifica-se como denúncia inepta. [HC 88.875]

 

Crime contra a ordem tributária. Imputação penal deduzida contra sócios da empresa.

 

Acusação que deve narrar, de modo individualizado, a conduta específica que vincula cada sócio ao evento supostamente delituoso. A questão dos delitos societários e a inadmissível formulação de acusações genéricas. Ofensa aos postulados constitucionais da plenitude de defesa e da presunção de inocência. Medida cautelar deferida. A invocação da condição de sócio e/ou de administrador de organização empresarial, sem a correspondente e individualizada descrição de determinada conduta típica que os vincule, de modo concreto, ao evento alegadamente delituoso, não se revela fator suficiente apto a justificar, nos delitos societários, a formulação de acusação estatal genérica ou a prolação de sentença penal condenatória. [HC 105.953 MC]

 

É gravemente inepta a denúncia que, a título de imputação de crimes praticados em concurso de agentes, não descreve nenhum fato capaz de corresponder às figuras de coautoria ou de participação de um dos denunciados.[9]

 

Denúncias genéricas, que não descrevem os fatos na sua devida conformação, não se coadunam com os postulados básicos do Estado de Direito. Não é difícil perceber os danos que a mera existência de uma ação penal impõe ao indivíduo. Daí a necessidade de rigor e prudência por parte daqueles que têm o poder de iniciativa nas ações penais e daqueles que podem decidir sobre o seu curso.[10]

 

O recorrente terá de demonstrar, além disso, no recurso extraordinário, a existência, na hipótese, de repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, para apreciação exclusiva pelo Supremo Tribunal Federal. Exclusiva, aí, quer dizer que a Presidência do tribunal local não poderá deliberar sobre o tema – se há ou não repercussão geral das questões constitucionais. Se o fizer, usurpará a competência exclusiva do Supremo. Assim, as Presidências das cortes, estaduais e federais, no ponto, cingir-se-ão à verificação do cumprimento, pelo recursante, sob aspectos essencialmente formais do art. 1.035, CPC.

É imprescindível enfatizar que a existência da repercussão geral é presumida. Na Constituição Federal:

 

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

 

III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:

 

§ 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros. [Art. 102, CF, grifos acrescentados]

 

A inconstitucionalidade, por exemplo, das infrações penais de perigo abstrato – como regra, e em tese, ocorre com os crimes de posse de arma, de drogas –, configura o instituto da repercussão geral, para os fins dos arts. 102, III, § 3º, CF e 1035, CPC. Porque claramente relevante sob os aspectos políticos, social e jurídico, no que extravasa, a passos larguíssimos, os interesses subjetivos da causa penal em concreto.

A demonstração do cabimento do recurso interposto – nunca é demais advertir – terá de ser realizada de modo técnico[11], com rigor normativo e considerados os óbices constitucionais, legais e regimentais. No STF:

 

Recurso extraordinário: letra a: possibilidade de confirmação da decisão recorrida por fundamento constitucional diverso daquele em que se alicerçou o acórdão recorrido e em cuja inaplicabilidade ao caso se baseia o recuso extraordinário: manutenção, lastreada na garantia da irredutibilidade de vencimentos, da conclusão do acórdão recorrido, não obstante fundamentado este na violação do direito adquirido. Recurso extraordinário: letra a: alteração da tradicional orientação jurisprudencial do STF, segundo a qual só se conhece do recurso extraordinário, a, se for para dar-lhe provimento: distinção necessária entre o juízo de admissibilidade do recurso extraordinário, a – para o qual é suficiente que o recorrente alegue adequadamente a contrariedade pelo acórdão recorrido de dispositivos da Constituição nele prequestionados – e o juízo de mérito, que envolve a verificação da compatibilidade ou não entre a decisão recorrida e a Constituição, ainda que sob prisma diverso daquele em que se hajam baseado o tribunal a quo e o recurso extraordinário. [RE 298.695]

 

A Constituição de 1988 tem o ser humano como seu ponto de partida e de chegada. A dignidade humana é seu centro e sua justificativa.

 

O Supremo Tribunal Federal guarda-a para que se resolvam tensões e turbulências. Para que retornem os tempos dos sonhos possíveis, que somente a democracia propicia. Por isso há que preservá-la. Porque o Brasil vale a pena. O brasileiro mais ainda. Todo ser humano vale. Por isso, zelar pela Constituição é uma benção a garantir os ideais realizáveis. A lembrança daquela tarde vinte e nove anos atrás é alento e desafio. Como a vida. Que poderá ser melhor. Depende de nós![12]

 

Nunca é demais lembrar que o processo atualmente não é mais considerado meio de alcançar a punição de quem tenha infringido as leis penais, porém um instrumento de tutela jurídica dos acusados.

 

Mas não é só no plano formal que o devido processo legal encontra expressão. Não basta que os trâmites, as formalidades e os procedimentos, previamente explicitados em lei, sejam observados pelo julgador. É preciso também que, sob o aspecto material, certos princípios se vejam respeitados.

 

Nenhum valor teria para as partes um processo levado a efeito de forma mecânica ou burocrática, sem respeito aos seus direitos fundamentais, sobretudo os que decorrem diretamente da dignidade da pessoa humana, para cujo resguardo a prestação jurisdicional foi instituída.[13]

 

 

A interpretação ortodoxa e rígida dos valores, dos postulados e das normas constitucionais, também poderão ser invocados, como reforço argumentativo, no recurso extraordinário, pelo recorrente. Sobre o originalismo – um método de interpretação rígido da Carta Americana – o eminente [e morto] ministro Antonin Scalla, da Suprema Corte dos Estados Unidos, dizia que:

 

Eu não me importo se os autores da Constituição tinham algum significado secreto em mente quando escolheram as suas palavras. Eu entendo suas palavras da maneira como elas foram promulgadas ao povo dos Estados Unidos. A única Constituição boa é uma Constituição morta. O problema de uma Constituição viva é que alguém tem de decidir como ela deve crescer e quando novos direitos devem vir à tona[14].

 

O recurso extraordinário, portanto, à vista do valor fundante da dignidade da pessoa humana, é meio hábil para contornar, quando e se ocorrentes, caso a caso, nas persecuções penais, as violações, diretas, deliberadas, frontais e ostensivas à Constituição Federal:

 

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

 

III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:

 

a) contrariar dispositivo desta Constituição. [CF]

 

 

É mais do que necessário, por conseguinte, conter [via recurso extraordinário] o poder punitivo estatal (proibindo excessos/garantismo negativo), racionalizando e limitando a persecução penal e o Estado policial. Isso se faz com base no postulado da dignidade humana, nas liberdades individuais, nos direitos fundamentais e nas garantias processuais. A tarefa, maior, do penalista (6), entretanto e consequentemente, consiste na tentativa – que não pode cessar nunca –, de encurtar a abissal [e absurda] distância existente entre o dever ser (7) e o ser (8).[15]

 

Alexandre Langaro, advogado criminal. Autor de livros e artigos jurídicos. Estudou o NY Criminal Procedure Law em Nova York



[1][Vide, no ponto, do autor deste artigo, o livro “Recurso Especial Letras A e C Passo a Passo”, Thomson, 2006].

[2][Alexandre Langaro: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/juiz-de-garantias-novidade/, sem o grifo no original].

[5][O Direito Penal só pune fatos (ação/omissão), daí estabelecer uma responsabilidade por fato próprio (Direito Penal do fato), opondo-se a um Direito Penal do autor fundado no modo de vida ou no caráter. (Prado, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro (Pág. 41 de 1414, Pos. 3542 de 50554, Forense, Edição do Kindle)].

[6][Prado, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, obra cit., Pág. 39 de 1414, Pos. 3478 de  50554].

[7][Direito Penal, Parte Geral, 4ª ed., 2019, livro digital, Pos. 1706, Kindle/Amazon].

[8][Comenta Quintero Olivares que “quando se invoca o princípio de culpabilidade como critério reitor da política criminal e da legislação penal, em realidade o que se quer é preservar uma série de garantias que o princípio encerra e que são a sedimentação de uma progressiva evolução do Direito penal].

[9][STF, HC 86.520/SP].

[10][STF, HC 89.310/SP].

[11][Alexandre Langaro, in “Recurso Especial Letras A e C Passo a Passo”, Thomson, 2006].

[12][https://oglobo.globo.com/brasil/artigo-vinte-nove-anos-atras-por-carmen-lucia-21922556].

[13][http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2017/09/1922020-significado-de-devido-processo-legal.shtml].

[14][Revista VEJA (versão digital), Edição 2466 de 24/2/2016].

[15][Alexandre Langaro: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/198694-2/. Os números das notas de rodapé constam na publicação origina do artigo citado].

 

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