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O Direito nas telenovelas: entretenimento ou desserviço?

02/10/2019 - Fonte: ESA OAB SP

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As telenovelas são uma verdadeira paixão nacional. O país já parou para saber quem matou Odete Roittman, o destino de Carminha em Avenida Brasil, quem foi o assassino de Salomão Hayala e por aí vai. São amores, desencontros, traições, falcatruas, e da melhor qualidade. O problema ocorre quando o entretenimento entra na seara jurídica. Aí os autores adotam suas próprias leis, sua forma de solução de conflitos, criam crimes inexistentes e simplesmente ignoram relações jurídicas. Eu particularmente adoro novelas, porque contam histórias que muitas vezes poderiam ser de alguém próximo de nós.  Mas o fato é que o Direito está sendo, com o perdão da “má palavra, esculhambado nas telenovelas. Vejamos o caso da atual novela das 21hrs da Rede Globo de televisão, “A dona do pedaço”, do autor Walcyr Carrasco, um verdadeiro mago da telinha. Tivemos recentemente o divórcio das personagens Lyris e Agno. A novela se passa em 2019, mas o processo de divórcio e a audiência se realizaram como se o Código Civil vigente fosse o de 1916, pois a mulher foi considerada culpada pelo divórcio e perdeu o direito aos bens do casal adquiridos na constância da união. Além disso, não teve direito a uma pensão justa, por conta, novamente, da culpa. Sabemos que não se discute mais a culpa pelo divórcio há muito tempo, e a pá de cal no assunto se deu com a Emenda Constitucional 66/2010, que alterou o artigo 226 da CF, permitindo o rompimento do casamento pelo divórcio e ponto. Ou seja, não é mais relevante saber e provar quem é o culpado pelo fim da união, e ainda que haja traição, o traidor não perde o direito aos bens adquiridos durante o casamento. A novela deu um verdadeiro nó na cabeça do telespectador e muitos deles acreditam que o que se passou na novela corresponde à realidade! E você, pobre advogado, terá que explicar ao seu cliente que não é bem assim...

Outro caso marcante da novela “A dona do pedaço” foi o episódio em que a personagem Maria da Paz, para não perder sua fábrica de bolos em função de um empréstimo pessoal, passa a fábrica para o nome de sua filha Joseane. Uau! Como o telespectador não pensou nisso antes? Para não perder seus bens, seus imóveis pelo não pagamento de dívida, é só passar tudo para o nome dos filhos...Ora, isso seria bem fácil, não é mesmo? Mas sabemos que isso não é possível. O ato da personagem Maria da Paz caracteriza a fraude contra credores, prevista nos artigos 158 a 165 do Código Civil, e a transferência para a filha seria facilmente anulável através da Ação Pauliana, já que o consilium fraudis nesse caso, é presumido.

Entretanto, verdade seja dita, outras questões importantes foram tratadas na telenovela em questão e são dignas de nota: o respeito aos direitos dos transgêneros e homossexuais, o perigo da pedofilia que será tratada nos próximos capítulos, o empreendedorismo, a ética do advogado etc.

São anos e anos de licença poética e abandono às disposições do Código Civil e da Constituição, mas o entretenimento das telenovelas vem trazendo também consciência social e política, e muitas vezes , questões de direito civil retratadas de forma adequada e deixando ao público a conclusão sobre certos aspectos. Um exemplo disso foi o caso da personagem Clara na novela “O outro lado do Paraíso” que sofria violência física por parte de seu marido. Logo na lua-de-mel, a personagem foi estuprada. E, durante todo o casamento, sofreu com a violência doméstica. Após cada capítulo, a novela colocava os contatos para a denúncia de violência doméstica e abuso. Nesse caso, portanto, a novela prestou um serviço relevante para a sociedade.    

As  personagens de advogados nas novelas são um caso à parte. Dão conselhos e orientações bizarras , para que o roteiro imaginado pelo autor da novela possa ser cumprido. Assim, papéis em branco viram procurações que transferem todo o patrimônio para terceiros, o processo dura uma semana, a nora casa com sogro e por aí vai. Mas entre amor e ódio, entretenimento e loucuras jurídicas, a telenovela sobrevive e  continuamos a aguardar ansiosamente o próximo capítulo . Cabe ao público se divertir, sem perder de vista que, como boa obra de ficção, o autor se utiliza da licença poética e, no caso do Direito, de uma  espécie de “licença jurídica” para viabilizar o final feliz. Na dúvida entre o  que diz o advogado da novela e a realidade, é bom sempre consultar um advogado do mundo real. Que venham os próximos capítulos, Walcyr Carrasco!         

 

Por: Solange Guimarães

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