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Pelo direito à realidade, é preciso conter as milícias digitais e as fake news

08/03/2022 - Fonte: ESA/OABSP

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Pelo direito à realidade, é preciso conter as milícias digitais e as fake news

por Ergon Cugler, Vitor Santos e Anderson Ribeiro

Com o avanço das discussões sobre o então Projeto de Lei 2.630/2020, também conhecido como “PL das Fake News”, muito se tem questionado sobre como conter a propagação da desinformação e das fake news em meio às ferramentas cada vez mais ágeis.

Há quem aposte que essa é uma discussão de natureza meramente tecnológica e que basta limitar o alcance das plataformas que então as fake news serão contidas. No entanto, ainda no início de 2019, o WhatsApp passou a limitar o encaminhamento de mensagens para apenas cinco contatos por vez: Para usuários comuns, um trabalho a mais quando se quer encaminhar um meme para vários colegas de uma vez. Para profissionais que propagam desinformação, porém, um pequeno ajuste na linha de código dos disparadores, mantendo então operações massivas de manipulação da realidade. Vale questionar, quem ganha quando todos são punidos com uma restrição tecnológica que sequer abala as milícias digitais?

Pesos e medidas

Em audiência recente do STF, no caso do Deputado Federal Daniel Silveira (PSL), o Tribunal decidiu por manter a prisão em flagrante do mesmo após propagação de fake news contra o Supremo. O posicionamento evidenciou que o direito à liberdade de expressão, presente na Constituição Federal em seu artigo 5º, não pode ser absoluto quando conflitante com outros princípios constitucionais, especialmente quando o réu utiliza da liberdade de expressão para distorcer a realidade para atacar pessoas ou direitos fundamentais. Apontou o ministro Gilmar Mendes na ADPF 572/21, “Isso não significa dizer que opiniões, ainda que impopulares, devam ser censuradas, mas que cada ordenamento jurídico deve estabelecer o limite entre o livre exercício do direito de expressão e os casos de polícia.”

Na ausência de legislação específica para produção e compartilhamento de fake news durante a pandemia, por exemplo, estados começaram a fazer enquadramento com base na Lei de Contravenções Penais (1941), prevendo prisão de até seis meses para quem "provocar alarma, anunciando desastre ou perigo inexistente, ou praticar qualquer ato capaz de produzir pânico ou tumulto", o que na prática resultava em prestação de serviços comunitários ou multa.

Diante das nuances, desde a produção, execução, disseminação até o impacto com ou sem dolo, não se deve tipificar da mesma forma quem apenas compartilhar desavisadamente uma notícia falsa e quem for responsável pela fabricação de tal notícia. Além disso, cabe destacar como agravante a formação de uma estrutura para disseminação de desinformação, sejam bunkers, células, ou esquemas de operações coletivas e coordenadas. Separar o “tio do zap” das então chamadas milícias digitais é o desafio para efetivamente combater a distorção da realidade, caso contrário, estaremos lidando apenas com os efeitos de uma causa maior.

Nesse sentido, hipóteses criminais possuem como característica obrigatória a clareza e, portanto, a necessidade expressa de se definir em um conjunto normas próprias com abrangência do conceito, aplicação e limites estritamente definidos e alinhados aos princípios do Direito, pois somente assim é possível formular ambiente de segurança jurídica. Partindo de tal pressuposto, entende-se que ao pensar em criminalização de conduta direcionada para fake news, deve-se trabalhar não só nas modalidades e diferentes agentes presentes no delito, mas também no ato de determinar os prejuízos gerados pela prática.

Sendo tratados pesos diferentes com medidas diferentes, ainda assim é preciso preservar um ordenamento comum que tipifique a prática no entorno das fake news e, mais do que isso, que entenda a realidade enquanto um direito fundamental. Até porque, em meio a conflitos e ambiguidades, o que nos resta sem direito à realidade?

Como conter as milícias digitais?

Pode-se dizer que são necessários esforços distintos e coordenados para combater a produção e disseminação de fake news, nos quais deve-se aprimorar os dispositivos legais que se regulamentam o tema, tanto na forma de positivar a abrangência dos danos causados pelas milícias digitais quanto da tipificação estrita do crime, e do agente criminoso, imputando-o a obrigação de reparação social ao dano causado, na forma da lei. Considerando atendidos aos pressupostos de legalidade e legitimidade em norma própria, pode-se avançar para um segundo plano de combate às fake news, que está mais ligado a criação ou implementação de sistemas tecnológicos que não só auxiliem na identificação das fake news para impedir a sua disseminação, mas que permitam o rastreamento das operações de milícias digitais, para que assim seja possível a responsabilização do agente orquestrador dessa conduta, que passa a ser tipificada como um crime pelo conjunto normativo.

Neste sentido, observa-se como primeiro esforço de discussão legal-normativa neste tema no Marco CIvil da internet, (Lei 12.965 de 2014), onde seu parágrafo 4º do artigo 19 determina que pode ser pleiteada judicialmente, em regime de tutela antecipada, a intervenção jurisdicional no caso de ‘’existindo prova inequívoca do fato e considerado o interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na internet, desde que presentes os requisitos de verossimilhança da alegação do autor e de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação”.

Desta forma, observa-se que por um lado, desde 2014 existe o esforço de atribuir previsão legal para combater os efeitos das fake news, sobretudo na seara da defesa dos direitos de imagem e reputação, que tem previsão punitiva legal, na forma que determinam os artigos nº 138, 139 e 140 do Código Penal (CP), sendo estes dispositivos fundamentais à defesa do direito à honra. Observa-se, que a depender do caso cabe ação civil indenizatória ou penal punitiva para coibição e reparação do dano individual causado pelas fake news.

Por um outro lado, há um avanço no que diz respeito à classificação do direito à informação, aos direitos difusos e coletivos. Este avanço se configura em concepções de diferentes ramos do direito. No direito do consumidor, por exemplo, pode-se observar a partir do inciso III, do artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que determina como um direito básico, e portanto, fundamental nas relações do consumo a prestação de: ‘’[...] informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem’’. Interessante interpretação deste dispositivo, observa-se no voto (REsp 1.515.895) do Sr. Ministro Humberto Martins do STJ, o qual guarda relação com o tema, “Se a informação é adequada, o consumidor age com mais consciência; se a informação é falsa, inexistente, incompleta ou omissa, retira-se-lhe a liberdade de escolha consciente".

Especialmente no que diz respeito às plataformas de mensageria privada, é possível assegurar a privacidade das mensagens ao preservar a criptografia enquanto se armazena os metadados. Em outras palavras, cria-se uma impressão digital (hash) para cada conteúdo em circulação para que, quando um usuário identificar algum conteúdo malicioso, este possa ser denunciado na ponta pelo usuário, sem necessidade de intermediação, preservando a privacidade da mensagem e identificando a origem de tal conteúdo. Ou seja, existem soluções tecnológicas que não conflitam com os direitos de liberdade de expressão e de privacidade, ao mesmo passo que constrange a produção de desinformação.

Além disso, quanto à monetização e veiculação de anúncios relacionados a conteúdos enganosos, o inciso IV do Art. 10 do então PL das Fake News busca dar conta da demanda: “Art. 10. Consideram-se boas práticas para proteção da sociedade contra a desinformação [...] V – interromper imediatamente a promoção paga ou a promoção gratuita artificial do conteúdo, seja por mecanismo de recomendação ou outros mecanismos de ampliação de alcance do conteúdo na plataforma”.

Em suma, mais do que a limitação da tecnologia e a restrição de plataformas, o cerne da questão parece estar nos recursos e nas estruturas de propagação que tais bunkers utilizam. No que diz respeito à regulação, para muito além de legislar sobre a tecnologia, o desafio está em rastrear o comportamento malicioso e abusivo arquitetado por milícias digitais. Enquanto isso, o desafio segue sendo buscar saber o que é real em meio à tanta desinformação.

Ergon Cugler é Pesquisador CNPq, Mestrando em Administração Pública e Governo da FGV e Gestor de Políticas Públicas pela USP. Associado ao Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB) e ao Grupo de Estudos em Tecnologia e Inovações na Gestão Pública (GETIP). É também membro da Comissão da Agenda 2030 da ONU para São Paulo.

Vitor Santos é discente de Direito pela Universidade Católica de Santos (UNISANTOS).

Anderson Ribeiro é discente de Gestão de Políticas Públicas pela EACH-USP e de Direito pela FADISP. Pesquisador associado ao Grupo de Estudos em Tecnologia e Inovações na Gestão Pública (GETIP) e ao Observatório Interdisciplinar de Políticas Públicas (OIPP).

 

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