Artigo
Liberdade de expressão e fake news: onde fica o direito à democracia?
01/03/2021
- Fonte:
ESA/OABSP
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Liberdade de expressão e fake news: onde fica o direito à democracia?
por Ergon Cugler* e Anderson Ribeiro**
Em meio às diversas narrativas em disputa nas arenas políticas, não faltam figuras que reivindicam para si o direito à liberdade de expressão quando são acusadas de propagação de fake news, discurso de ódio ou ataque às instituições. Não se trata apenas de um “tiozão do zap” que replica mensagens no grupo da família, mas de figuras públicas, por vezes eleitas e com poder institucional, que fazem questão de vestir um manto do direito à liberdade de expressão tentando legitimar ataques à democracia, às instituições, propagando desinformação e fake news como se fossem pontos de vista.
Há toda uma discussão sobre o “paradoxo da tolerância” de Karl Popper (1945), no qual o autor austro-britânico reforça que “devemos-nos reservar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar o intolerante”. No entanto, com a dinamicidade de um mundo conectado e a desinformação cada vez mais presente como estratégia premeditada de manipulação da realidade, preservar a saúde das instituições democráticas tem se mostrado um enorme desafio cotidiano. Porém, entre a liberdade de expressão e as fake news, onde fica o direito à democracia e até mesmo o direito à realidade?
Direito à Liberdade de Expressão
No Brasil, o direito à liberdade de expressão está garantido com base no artigo 5º da Constituição Federal de 1998, mais precisamente no inciso IX, o qual prevê que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de Censura ou Licença”. Nesse sentido, fica assegurada a liberdade de pensar e de expor seus pensamentos, dando a todas as pessoas o direito de opinião, que é um dos mais importantes na garantia do Estado Democrático de Direito.
Vale recordar, porém, que uma das características das normas constitucionais é que nenhuma pode existir em oposição a outra, ou seja, um direito não pode ser legítimo na condição em que seu uso possa ferir outro direito constitucional. Nessa linha, foi escrito no artigo 5º dois incisos que servem como freios para o abuso do direito à liberdade de expressão, que são os incisos IV e X:
O inciso IV se debruça a garantir a liberdade de opinião, porém, não sendo essa na forma anônima, “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Ou seja, para garantir o livre debate de ideias, as pessoas envolvidas devem ter a sua personalidade definida e não anônima, a fim de resguardar a devida responsabilização pelas palavras ditas, eventualmente em vias judiciais.
Nessa mesma linha, o inciso X estabelece limites que reforçam a necessidade de se garantir um direito em consonância (sem violar) outros direitos, pois “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Assim sendo, o Direito Constitucional regula a convivência em sociedade a fim de constituir um acordo comum entre todas as pessoas, um pacto social, para que exista viabilidade para harmonia social. Dessa forma, o uso dessas prerrogativas constitucionais de modo a atacar indivíduos, grupos, instituições e a própria Constituição se faz uma afronta aos princípios bases de igualdade e fraternidade que são explícitos em todo o decorrer da Carta Magna.
Para tanto, pela defesa dos princípios democráticos, é preciso reafirmar a liberdade de expressão como um direito de via dupla, no mínimo, no qual tanto o emissor tem o direito de se expressar em relação ao que pensa, mas também o receptor tem o direito de receber uma informação verdadeira e compatível com a realidade. Caso contrário, se exclusivo o direito à liberdade de expressão apenas ao emissor, qual direito de compreensão e interação com a realidade terão aqueles que receberem notícias falsas e desinformações?
Direito à Democracia
Quem cria uma polarização entre a liberdade de expressão e a defesa da democracia banaliza os princípios constitucionais, até porque ambas dependem uma da outra para que existam como tal. Enquanto a realidade segue em disputa, a democracia está ameaçada por ser influenciada estruturalmente na teia da virtualidade de uma realidade quase que paralela, levando a disputa democrática de ideias à distorções que fragilizam gradativamente o Estado Democrático de Direito. Até porque, se não é possível conceber e interpretar a realidade tal como ela é, como será possível eleger representantes que manifestem as vontades populares e não tão somente narrativas distorcidas?
Ultimamente tem estado em evidência uma série de casos de ataque às instituições, com o objetivo único de abalar a ordem vigente e forçar os limites do estado democrático de direito. Condutas, estas, criminosas de acordo com os parâmetros constitucionais já analisados neste documento e regulamentados pela Lei de Segurança Nacional que em seu artigo 17 tipifica como crime com pena prevista de 3 a 15 anos o ato em que se almeja: “Tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito”.
Recentemente pudemos acompanhar o notório caso do Deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), detido acusado de crimes contra a honra do Supremo Tribunal Federal e de seus ministros. Este caso trouxe para o âmbito jurídico uma contribuição importante no sentido de consolidar um caminho para uma jurisprudência alinhada com a defesa das nossas instituições e da nossa democracia. Neste mesmo sentido, foi apontado na relatoria do Ministro Alexandre de Morais na audiência em que o STF decidiu por manter a prisão em flagrante do deputado, as seguintes declarações: “A previsão constitucional do Estado Democrático de Direito consagra a obrigatoriedade do País ser regido por normas democráticas, com observância da Separação de Poderes, bem como vincula a todos, especialmente as autoridades públicas, ao absoluto respeito aos direitos e garantias fundamentais, com a finalidade de afastamento de qualquer tendência ao autoritarismo e concentração de poder”. Sendo esse, um momento muito importante para o avanço da criação de sistemas de defesa das bases institucionais do nosso regime democrático.
Um momento importante na consolidação do debate jurídico acerca do tema foi a audiência no plenário do STF para a abertura de um inquérito de supostos grupos cujo objetivo era a disseminação em massa de notícias falsas. E o ministro Gilmar Mendes é categórico ao afirmar em seu voto que: “Não se trata de liberdade de expressão. O uso orquestrado de robôs, recursos e pessoas para divulgar, de forma sistemática, ataques ao STF, ameaças pessoais aos Ministros e a seus familiares, passa longe da mera crítica ou manifestação de opinião. Trata-se, na verdade, de movimento organizado e orquestrado, que busca atacar um dos poderes responsáveis pela garantia dos direitos fundamentais (art. 102 da CF/88) e das regras do jogo democrático”. Rebatendo assim as premissas que tentam igualar ataques criminosos de milícias digitais à democracia e ao direito de liberdade de expressão.
Direito à Realidade
Uma outra contribuição importante foi a cerca do direito a realidade, esboçado no trecho: “Nessa linha, não se pode esquecer que a divulgação sistemática de notícias inverídicas é capaz de violar o direito dos indivíduos e da sociedade de ser corretamente informada, inclusive para que possa tomar suas próprias decisões de maneira livre e consciente”.
Ao observar a lógica arquitetada pelas milícias digitais tem-se mais na centralidade o desafio de fazer da liberdade de expressão um direito inviolável. Não se trata, porém, de jogar a culpa da desinformação na conta da tecnologia em si, mas de condenar o malicioso uso de tecnologias para a produção de desinformação. Pois não se trata também de punir criminalmente quem repassar desavisadamente alguma informação sem antes checar se é verdadeira ou não - apesar da gravidade de tal ação -, mas de rastrear as milícias que lucram ao produzir desinformação com objetivo doloso de distorcer a realidade.
Assim sendo, a própria tecnologia pode - e deve - estar a serviço do processo de qualificação de uma sociedade conectada, articulada e fortalecida inclusive por mecanismos participativos e de fiscalização que resgatem o papel liberdade de expressão como instrumento de transformação da realidade. Pois, enquanto engenheiros do caos projetam técnicas diversas que têm ameaçado a teia democrática diariamente, a defesa da democracia exige também que se defenda a existência da realidade como um direito fundamental e inviolável. Caso contrário, quem terá direito à realidade em um mundo cada vez mais virtualmente arquitetado?
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* Ergon Cugler é pesquisador da EACH/USP, associado ao Observatório Interdisciplinar de Políticas Públicas (OIPP) e ao Grupo de Estudos em Tecnologia e Inovações na Gestão Pública (GETIP), é também Representante da Sociedade Civil na Comissão da Agenda 2030 da ONU para São Paulo.
** Anderson Ribeiro é graduando em Gestão de Políticas Públicas pela USP (Universidade de São Paulo) e em direito pela FADISP (Faculdade Autônoma de Direito).